classe: Sei o que devo fazer, sei como fazer, sei que é justo e perfeitamente possível, mas tenho
medo do que virá depois. Talvez o sonoro To be or not to be that is the cuestion, tenha que ser
metamorfoseado em To do or not to do, that is the cuestion.
OCUPA TUDO!
"Não sei, só sei que foi assim. Todos os
fatos aqui narrados são rigorosamente verdadeiros, apenas alguns deles não
aconteceram... ainda."
Foi assim. Começou mais ou menos quando os jovens
ocuparam as escolas. Aprendiam e ensinavam, uns aos outros, sem diário de
classe, sem avaliação e nota. Sentavam-se em roda e conversavam. Cantavam,
liam, falavam alto, sorriam e se punham sérios. Limpavam os banheiros, faziam
comida, arrumavam as carteiras, pintavam paredes, dando um jeito nas lousas e
janelas quebradas.
Alguns levavam comida e cobertores, livros e
músicas, poemas e esperanças… e eles foram, assim do nada, construindo uma nova
escola. Pelo menos é o que achavam àquela época. Mas, aos poucos, vindo das
sombras onde se escondem entre as luzes da cidade, começaram a brotar pessoas.
Não se sabia que ainda havia pessoas. Os moradores de rua trouxeram pão com
manteiga e chocolate quente. Os ladrões de comida ficaram pasmos: afinal, como é
que a comida chegava às escolas e eles não ganhavam nada?
Os camponeses, então, resolveram que não
poderia faltar comida para a moçada e decidiram imitar os estudantes (que os
tinham imitado) e ocupar as terras. E lá plantavam comida, uma coisa que
muita gente tinha esquecido o que era, acostumados que estavam em produzir
emulações de comida em caixas coloridas e vistosas cheias de química,
espessantes, acidulantes e sabores artificiais idênticos ao natural. Para
plantar precisavam de instrumentos de trabalho, máquinas e caminhões… os
estudantes precisariam de lápis, cadernos, panelas, janelas e portas, fogões e
geladeiras, carteiras e tintas, tijolos e cimento…
Foi assim que eles apareceram. “Sei cozinhar”,
disse um senhor, “sei fazer tijolos”, disse uma senhora. “Conserto panelas”. Um
sabia pintar paredes, outros levantar paredes, trabalhar a madeira, o ferro, o
barro, o pano. Sabe-se lá onde estavam este tempo todo, sofrendo de dura
invisibilidade, presos pela magia das coisas, reificados em seus corpos de
metal, sua pele de plástico, atrás das embalagens nas gôndolas do supermercado,
em sua existência coisal, desempregados, demitidos, descartados, explorados… e
os operários ocuparam as fábricas e decidiram que a partir daquele momento
produziriam objetos úteis e foram conversar com os estudantes, os camponeses,
as pessoas e quanto mais produziam para satisfazer necessidades, menos coisas
eram, as coisas e eles mesmos.
É verdade que não sabiam fazer de tudo e
erravam muito. Era muito divertido ver aquelas coisas todas erradas, como casa
de parede caiada que mostra a tinta que já foi sua, a pedra e barro de que é
feita, e tudo foi ficando muito bonito. Sem embalagem e sem propaganda, as
vezes torta, as vezes feia, como a gente que fazia as coisas… bonitas.
Foi neste momento que, meio assim
envergonhadas, meio sem jeito, foram aparecendo pessoas que diziam que sabiam
de algumas coisas que podiam ajudar… quem sabe… saíram de seus escaninhos, seus
laboratórios, suas salas, seus currículos lattes. Saíram de seus esconderijos e
dos livros, e foi assim que as universidades foram ocupadas e alguns
professores descobriram, atônitos, que também ali havia estudantes e
funcionários, e que do lado de fora também havia pessoas com necessidades.
Fizeram então uma pergunta que há muito tempo tinham abdicado de formular: o
que é que vocês querem? Foi engraçado porque justamente eles que viviam fazendo
perguntas e respondendo suas próprias perguntas, e discordando entre eles de
suas respostas, nem sempre sabiam responder às perguntas daquela gente toda que
ocupavas as escolas, as terras, as fábricas… todos riram muito disso e depois
ficaram sérios buscando as respostas.
E não faltaram mais professores, médicos,
enfermeiras, engenheiros, assistentes sociais, agrônomos, psicólogos, filósofos,
sociólogos, pedagogos, dentistas, biólogos, químicos, físicos e de tudo um
pouco. A diferença é que agora eles vinham em todas as cores. Eram índios, eram
negros e negras, eram gente que olhando assim, parecia gente, igual àquelas que
viviam lá fora. Um desavisado diria que eram pobres, pelo jeito simples de
falar e de se vestir, porque andavam de ônibus, moravam perto e comiam do mesmo
pão.
Porque comiam do mesmo pão e respiravam do
mesmo ar, porque ficou difícil de diferenciar um do outro, começaram a se
apaixonar loucamente, de todos os jeitos possíveis. E foi tanta paixão, tanto
beijo, tanto tesão, que ninguém mais achou que precisava catalogar como homo,
hetero, trans, bi e combinou chamar tudo de amor e foi assim que aconteceu. A
família foi ficando uma coisa tão grande que não cabia mais, nem no estatuto,
nem na lei, então, foi assim que de tão grande cabia o jeito de cada um.
Como todo mundo estava ocupando tudo, os
loucos ocuparam os manicômios e decidiram em assembléia geral… fechar todos os
manicômios. Saíram pelas ruas e diziam para as pessoas… “estou triste”, “dói
muito”, “enfim vocês entenderam… “você gosta de mim”, “me dá um cigarro.
Decidiu-se que não era crime ser triste, nem louco, para ser punido com remédio
e contenção, mas mereciam e precisavam de tratamento e compreensão, então, os
loucos foram assim se misturando com a vida e foi bom. Os loucos ficaram mais
vivos e a vida mais louca… o que foi bom.
E os cantores cantaram, os poetas poetaram, os
pintores pintaram, os escultores esculpiram, os escritores escreveram. No
começo ninguém se deu conta, mas tinha gente cantando em escola ocupada, no
ônibus, nas escadas do Teatro Municipal, tinha gente recitando poesia em sala
de aula, dando aula em teatro, uma bagunça gloriosa.
Num dia destes, de tamanha confusão, um
policial que foi prender uma mulher que havia roubado comida de um
supermercado, resolveu perguntar por que ela tinha feito aquilo e diante da
resposta que foi para dar comida para seus filhos que estavam com fome, foi lá e
fez uma compra e deu pra ela. Vejam só!
Quando quase tudo estava ocupado foi que
ouviram gritos vindos do palácio do governo. O povo foi até lá com cuidado. Não
foi passeata nem manifestação, foram lá por curiosidade. Na sala presidencial
estavam Temer e Cunha, engalfinhados rolando pelo chão disputando aos tapas a
faixa presidencial. “É minha… é minha… eu peguei antes”!!!!
O pessoal que havia ocupado os CAPS disse que
ia cuidar deles. Havia outros que sofriam de comportamento tão estranho e que nem
tinham percebido que tudo já estava ocupado. Eram empresários que sentados no
canto de suas casas em posição fetal ficavam repetindo… “é meu, é meu”,
banqueiros agarrados a malas de dinheiro com olhos vidrados e loucos dizendo
“posso comprar qualquer um que queira se vender, ouros agarrados a espingardas
gritavam eu mato, eu mato”, parlamentares aos berros choravam “se me der um
cargo eu voto”, homens altos e raivosos de terno com um saiote cor de rosa de
bailarina que berravam “eu não sou gay, não sou”, gente sentado na frente da TV
tentando, sem conseguir, achar a Globo News e até mesmo pessoas comuns com camisas
da seleção brasileira que olhavam assustadas pelas janelas esperando que os
militares as salvassem.
Quando o último pedacinho do mundo foi ocupado…
as pessoas se reuniram para decidir se já era hora de passar do reino da
necessidade para o reino da liberdade é que apareceu a última surpresa. Um
operário pediu a palavra e falou: “reino é o cacete… proponho que seja uma
República”!
Não sei, só sei que foi assim. Todos os fatos
aqui narrados são rigorosamente verdadeiros, apenas alguns deles não
aconteceram… ainda.
Mauro Iasi,
Campinas, 19/05/2016
https://blogdaboitempo.com.br/2016/05/19/ocupa-tudo/
Acesso dia 21/05/2016.