O sonho de montar o próprio negócio sempre esteve presente no imaginário dos trabalhadores brasileiros. Transformar esse sonho em realidade raramente ganhou os contornos esperados. Para muitos, esta passagem veio com o desemprego de longa duração. Para outros, ela iniciou na busca de uma fonte complementar de renda.
Nos sacolejos da realidade, as posições do senso comum diante das atividades por conta própria acompanharam os passos com os quais o capital plasmava a classe trabalhadora. Se, por exemplo, na primeira metade dos anos de 1980, ser camelô era sinônimo de “não ter um trabalho digno de gente”, dez anos depois, as vítimas do desemprego fariam dele uma “profissão” em franco crescimento.
Tempos depois, este “empreendedorismo forçado pela necessidade” ganhou a chance de sair da informalidade com a possibilidade de obter o CNPJ. Os baixos custos da formalização do próprio negócio alimentavam os sonhos de sucesso ao ampliar o raio de ação dos autônomos com a prestação de serviços para empresas e administrações públicas. Na dinâmica deste processo, a carteira assinada foi perdendo o brilho que tinha e, hoje, não é desejada pelos jovens que ingressam no mercado de trabalho.
Que elementos construíram este último patamar? A viração melhorou tanto a vida das pessoas a ponto de elas dispensarem as garantias do emprego formal? O que caracteriza a aversão ao trabalho celetista? Partiremos destas perguntas para formular as nossas reflexões.
1. As constatações das pesquisas de opinião.
Já faz tempo que partidos de esquerda, sindicatos e movimentos populares apontam suas dificuldades para dialogar com “a nova classe trabalhadora”. Alguns elementos ajudam a visualizar o comportamento das novas gerações.
De acordo com o Ministério do Trabalho, em 2024, a rotatividade na faixa etária que vai dos 18 aos 24 anos chegou a 96,2%. Ou seja, de cada 100 jovens que estavam empregados no início de janeiro, apenas 4 completariam o ano na mesma empresa. Os números mostram que 36,0% deste grupo vinculavam a solicitação de desligamento à possibilidade de um emprego melhor e o mesmo índice apontava os baixos salários como causa; 31,0% afirmavam que seus esforços no trabalho não estavam sendo reconhecidos; 28,0% haviam se deparado com problemas éticos diante das demandas empresariais; 20,0% alegavam como justificativa o fato de não haver nenhuma flexibilidade na jornada de trabalho; 18,0% haviam tido problemas com a chefia e a mesma porcentagem de entrevistados afirmava que o trabalho não oferecia benefícios monetários além do salário; 12,0% apresentavam razões diferentes das listadas anteriormente.[1]
As análises disponíveis mostram que a busca de novas oportunidades deita raízes na precariedade do mercado de trabalho e no “vire-se para sobreviver” que marca o cotidiano de um ambiente onde nada tem duração garantida. Entre inovações tecnológicas, mudanças na gestão de recursos humanos, efeitos da concorrência nos balanços das empresas e políticas de investimento com alto grau de imprevisibilidade, apostar numa carreira linear numa única empresa é uma ideia que a quase totalidade dos jovens considera anacrônica e irrealizável.
Para eles, pular de um emprego a outro guarda uma relação direta com a chance real de crescimento imediato, com um aprendizado em sintonia com suas perspectivas de futuro, com a recusa a abrir mão dos próprios valores e com a percepção de que os sacrifícios exigidos pela fidelidade ao empregador têm cada vez menos chances de encontrarem compensações satisfatórias. Isso não significa que a coerção da sobrevivência seja incapaz de dobrar a vontade e os instintos da juventude, mas que, se as empresas quiserem reter os novos talentos, terão que dialogar com as demandas dos funcionários que desejam manter no quadro de empregados.
Somados todos os fatores, segundo a pesquisa Datafolha realizada em junho deste ano, 68 em cada 100 jovens da faixa etária que vai dos 18 aos 24 anos diziam ser melhor ter um trabalho por conta própria a ganhar a vida num emprego formal, ante uma média nacional de 59,0%.[2] Diante de porcentagens tão elevadas, o que sustenta o desejo de abrir mão dos direitos legais para se arriscar num trabalho autônomo?
2. Os fragmentos da realidade que todos veem.
Para a maioria das pessoas, ganhar a vida no Brasil sempre foi sinônimo de “ralar muito para pouco salário”. Levantar cedo, passar longas horas em transportes públicos lotados e de má qualidade, dedicar os melhores anos da vida a empresas que não reconhecerão o valor do próprio trabalho e passar por perrengues com a chefia são parte de um cotidiano que grava no corpo as marcas do adoecimento físico e do esgotamento psíquico.
A realidade do trabalho vivida pelos pais é clara quanto basta para aconselhar os filhos a procurar outro caminho. Entre ganhar pouco e ser humilhado pelas chefias num emprego de carteira assinada e ter uma renda semelhante sem precisar se submeter aos desmandos empresariais, o bom senso recomenda buscar se estabelecer por conta própria. Sem nenhuma percepção dos mecanismos estruturais do sistema que caracterizam o cotidiano da exploração nas mais diferentes expressões do mercado de trabalho, a pergunta com a qual as redes sociais alimentam a aversão dos jovens à carteira assinada é simples e direta: quanto você está disposto a pagar pela mísera segurança que um contrato formal te oferece?
Na esteira dos “casos de sucesso”, a sedução diária dos influenciadores sociais apresenta o trabalho por conta própria como o único capaz de evitar os desgastes que estão sob os seus olhos. Esta ideia ricocheteia nos pensamentos de quem busca a independência econômica na exata medida em que passar pelos mesmos perrengues do trabalho paterno é apontado como um problema estritamente vinculado a escolhas pessoais. Fugir desta sina é uma missão a ser cumprida com o estudo, com o desenvolvimento das próprias habilidades, com os cursos oferecidos pelos próprios influenciadores, com tudo o que pode evitar a necessidade e a “vergonha” de ter que procurar um trabalho celetista.
Neste cenário, o desafio de equilibrar o imponderável da vida com a insegurança dos ganhos, típica do trabalho como autônomo, não costuma ser enfrentado recorrendo às estatísticas, nem a uma avaliação cuidadosa dos limites que cercam os casos de sucesso. Veiculados como resultado natural da mescla de flexibilidade, dedicação, esperteza, tino e sorte, os exemplos que costumam ser citados seduzem na exata medida em que colocam a chance de realização pessoal e a emancipação da escravidão do trabalho assalariado ao alcance de todos.
Nesta altura, novas perguntas colocam o indivíduo na parede: o que você está esperando para correr atrás dos seus sonhos? Ou será que você não acredita no seu potencial? Esqueceu que querer é poder? Você é frouxo a ponto de não enfrentar os riscos de um futuro melhor para preferir a segurança que negará a realização que almeja? Ou será que você não se julga “bom” o suficiente para enfrenta-los?
Presente nas mídias sociais, este questionamento é, ao mesmo tempo, um desafio e uma reprimenda a quem titubeia diante da “segurança” da carteira assinada.[3] O estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (IBRE FGV), com base nos dados apurados pelo IBGE em 2023, revela que a porcentagem dos que optaram pelo trabalho autônomo por vontade própria é superior à dos que viraram empreendedores por necessidade. Pelo relatório, o primeiro grupo é composto por 55,1% dos entrevistados, ao passo que o contingente dos “autônomos por obrigação” engloba os 44,9% restantes. [4]
Ou seja, contrariando as percepções dominantes nos movimentos sociais, o empreendedorismo por obrigação não representa mais a maior parte dos trabalhadores autônomos, mas envolve um núcleo dez pontos percentuais menor quando comparado ao que é integrado por pessoas que fizeram esta opção apesar de terem outras possibilidades de ganhar a vida. Trata-se de uma mudança que não pode ser menosprezada por quem pensa as formas de unir os mais diferentes setores da classe para frear a exploração que pesa sobre ela.
3. O invisível mostra que as coisas não são bem assim.
Para cada empreendedor de sucesso, quantos perderam o que tinham ao apostar todas as fichas no próprio negócio? Os ganhos são realmente superiores aos do trabalho formal? Trabalhar por conta própria não adoece? Que vantagens o capital consegue consolidar com o empreendedorismo? É com estas perguntas que buscamos separar os mitos da realidade.
Um estudo do IBGE divulgado em dezembro de 2024, joga algumas luzes na relação entre nascimento, vida e morte das empresas. Segundo os dados publicados, “das empresas empregadoras que nasceram em 2017, 76,2% sobreviveram em 2018, 59,6% em 2019, 49,4% em 2020, 42,3% em 2021, e apenas 37,3% sobreviveram em 2022”. [5] A ideia pela qual este processo de fechamento das empresas se deve, sobretudo, aos efeitos da pandemia cai por terra quanto resgatamos as porcentagens dos levantamentos anteriores.
Das 612.954 empresas nascidas em 2008, por exemplo, 81,5% estavam vivas no ano seguinte; dois anos depois, esta porcentagem havia caído para 70,7%; em 2011, as que se mantinham de portas abertas eram 60,8%; em 2013, haviam sobrevivido 47,5%; mas, em 2018, apenas 25,3% continuavam em atividade.[6] Obviamente, o número de fechamentos registrado em cada ano dos períodos considerados guarda uma relação direta com os períodos de recessão econômica e com a realidade dos setores aos quais pertenciam os empreendimentos considerados. Na comparação com os períodos iniciados após 2008, a porcentagem dos que completaram uma década de atividade se manteve entre 20,0% e 25,0%.
Na seara dos microempreendedores individuais, o dado mais recente do SEBRAE aponta que 29,0% dos que têm o CNPJ fecham após 5 anos de atividade.[7] E aqui vale ressaltar que este contingente representa cerca de um quarto do total dos trabalhadores autônomos.[8]
Em termos de renda, a pesquisa realizada pelo IBRE FGV, oferece um panorama das porcentagens de autônomos de acordo com os ganhos conseguidos através de suas atividades. Vejamos o que dizem os números:
Distribuição dos trabalhadores autônomos por salários mínimos segundo a média de 2023.[9]
Renda em salários mínimos |
Autônomos com CNPJ |
Autônomos sem CNPJ |
Porcentagem do total de trabalhadores autônomos |
Até 1 salário mínimo |
16,0% |
53,0% |
44,0% |
Entre 1 e 3 salários mínimos |
50,0% |
38,0% |
41,0% |
Entre 3 e 5 salários mínimos |
20,0% |
6,0% |
10,0% |
Entre 5 e 10 salários mínimos |
9,0% |
2,0% |
4,0% |
Mais de 10 salários mínimos |
4,0% |
1,0% |
1,0% |
De acordo com o quadro, percebemos que mais da metade dos trabalhadores por conta própria que atuam na informalidade recebe até um salário mínimo mensal e 91,0% deles têm uma renda inferior a 3 salários mínimos. Entre os autônomos com CNPJ, 66,0% integram o contingente que recebe até R$ 4.554,00. No total de trabalhadores por conta própria, apenas 5,0% ganham acima de 5 salários mínimos.
À medida que não encontramos dados referentes à porcentagem de trabalhadores por conta própria com ganhos superiores aos auferidos no período em que eram assalariados com um contrato formal é impossível tirarmos conclusões em relação às vantagens financeiras obtidas com a adesão ao empreendedorismo. Apesar disso, nos sentimos confortáveis em afirmar que, em termos financeiros, a migração da carteira assinada para o trabalho por conta própria foi vantajosa apenas para um número bastante reduzido de pessoas.
Um forte indício de que não estamos errados em nossas impressões tem como base a pesquisa do IBRE FGV, citada anteriormente. Pelos dados coletados, 66,7% dos autônomos entrevistados gostariam de ter um trabalho com carteira assinada, uma porcentagem que é 7,7 pontos percentuais superior aos 59,0% que, segundo a média nacional da pesquisa Datafolha, afirmavam que era melhor trabalhar por conta própria.[10] Concretamente, somos levados a crer que, uma vez experimentadas a imprevisibilidade da renda e as demais mazelas do trabalho autônomo, os sofrimentos e as angústias do cotidiano levam as pessoas a colocarem os pés no chão.
Enquanto os influenciadores que veiculam as possibilidades de ganhar muito dinheiro na internet marcam os sonhos de uma vida boa sem sair de casa, a realidade da grande maioria que trilha os caminhos da rede mundial de computadores traz a tristeza de quem viu os mitos derreterem. A porta de entrada mais acessível para este mundo oferece uma variedade de “microtrabalhos” organizados por sites e plataformas ou por empresas vinculadas à formação de bancos de dados para sistemas de inteligência artificial. Via de regra, trata-se de um trabalho exaustivo e mal remunerado que, segundo os testemunhos publicados, só permite pagar as contas do mês quando as pessoas assumem compromissos com mais de uma empresa.[11]
Poder organizar livremente o próprio trabalho sem ter que sair de casa, não ter chefes e nem correr o risco de adoecer em função dos seus desmandos costumam pesar no prato da balança que equilibra os gastos adicionais com energia elétrica, internet de boa qualidade e equipamentos que o autônomo deve possuir para realizar as tarefas assumidas. O que a quase totalidade das pessoas esquece é que, por exemplo, o papel da hierarquia de carne e osso é assumido de forma impessoal e invisível por um algoritmo cujas regras de funcionamento o autônomo não controla. A coerção deste mecanismo digital se materializa nos tipos de tarefas e nos ganhos que oferecem a “bons” e “maus” trabalhadores por meio de uma verificação em tempo real do desempenho pessoal, e isso sem esbravejar, desqualificar ou xingar ninguém, como fazem os humanos nas posições de chefia.
Além de jogar luz nos ganhos efetivos, as pesquisas existentes começam a levantar os problemas de saúde desse tipo de trabalho. À medida que, em sua grande maioria, estamos falando de tarefas repetitivas que produzem fadiga física e mental em extensas jornadas laborais e cujas dificuldades não são partilhadas com colegas ou amigos, a sensação de isolamento e a falta de sentido do trabalho se unem aos olhos que ardem, ao sofrimento causado pelo esforço osteomuscular e aos problemas da sobrevivência diária para dar vida a situações de ansiedade e de angústia. A ausência de pesquisas de longo prazo ainda impossibilita a constatação aprimorada das formas e do grau de adoecimento psíquico que acomete estes trabalhadores, mas o que já dá para vislumbrar não é nada animador.[12]
Infelizmente, as vozes solitárias dos sofrimentos experimentados pelos autônomos encontram pouquíssima ressonância na mídia e sequer são registradas como causadas pelo trabalho nos atendimentos do Sistema Único de Saúde onde a grande maioria dos autônomos procura ajuda. Por isso, uma ação coletiva capaz de sacudir os mitos pelos quais quem faz o que gosta não adoece vai demandar tempos que prometem ser longos.
4. Nas dobras das lutas de classes
Historicamente, a relação doença-trabalho-exploração tem sido uma forma irrefutável de comprovar os efeitos das atividades laborais em homens, mulheres e crianças. Quanto mais amplo o contingente de pessoas capaz de visualizar coletivamente as marcas do trabalho nos seus corpos, maior a chance de tomar consciência deste nexo cotidiano e perverso e de agir para mudar a realidade. Impedir este processo não dificulta apenas a criação das condições que darão origem a novas lutas, mas se caracteriza, sobretudo, como uma forma de inocentar o capital em relação aos estragos produzidos. Alguns exemplos ajudam a entender o que acabamos de afirmar.
Imagine uma empresa química com um elevado grau de insalubridade. Em geral, a rotatividade dos trabalhadores se encarrega de eliminar quem, terceirizado ou diretamente contratado, dá sinais de adoecimento. Desta forma, o nexo causal doença-trabalho-exploração é ocultado com a demissão de quem foi contaminado. Mas o que aconteceria se grande parte deste contingente tivesse sido admitida como Pessoa Jurídica?
Assinado o contrato pelo qual a execução das tarefas ocorrerá num determinado espaço da indústria, a responsabilidade de garantir a própria incolumidade cai nos ombros do prestador de serviços. Logo, ele que escolha o tipo de equipamento de proteção e a qualidade do mesmo, sabendo que o dinheiro gasto para esta finalidade será retirado do valor que receberá. Se este trabalhador por conta própria desmaiar, sofrer enjoos, tonturas, dores de cabeça em função da presença de agentes agressivos ou, tempos depois, perceber que foi por eles contaminado, muito dificilmente reunirá as condições para responsabilizar a empresa pelo ocorrido. Afinal, ele sabia de tudo e não tomou as precauções necessárias, logo, adoeceu por escolhas que só podem ser atribuídas à sua negligência.
Repare que, quanto maior o número de trabalhadores nesta condição, mais a empresa conseguirá “limpar” suas estatísticas em relação ao adoecimento e aos acidentes de trabalho e menos o patrão se verá obrigado a gastar para reduzir a insalubridade e a periculosidade. Isso sem contar a possibilidade de melhorar a imagem do seu negócio perante a opinião pública e o fato de ter menos dores de cabeça com a justiça, com os sindicatos e com o próprio Estado.
No momento em que escrevemos, o esforço de inocentar o capital em relação aos estragos produzidos pelo trabalho ganha terreno, sobretudo, através das atividades realizadas através das plataformas digitais (uber, uber eats, Log entregas de documentos, etc.).[13] Agindo nesta direção, o capital estabelece “parcerias” com as quais reduz ao “osso” os seus custos fixos, diminui fortemente suas responsabilidades com os prestadores de serviço e, ao ficar com a porcentagem menor do valor pago por cada trabalho realizado, diminui o peso da palavra “exploração” diante da sociedade.
Agora...pare e pense: quando o numero de autônomos crescer acima da demanda do seu trabalho, o valor oferecido pelas tarefas contratadas cairá na mesma proporção? Se cada vez mais Pessoas Jurídicas marcarem presença no espaço da empresa, o que acontecerá com o trabalhador coletivo?
Diariamente e no país inteiro, inúmeros trabalhadores trafegam nos dois sentidos da fronteira que separa o trabalho assalariado com registro em carteira das ocupações dos autônomos. Num cenário de constante enxugamento dos quadros de funcionários, manter o saldo positivo da migração rumo às atividades por conta própria não só ajuda a baratear progressivamente o valor dos contratos como permite conter as chances de conflito social graças às supostas possibilidades de os demitidos ganharem a vida como empreendedores.
Por outro lado, quanto maior o número e as formas de contrato presentes no seio do trabalhador coletivo, maior a dificuldade dos diferentes grupos que o compõe somarem forças em volta de uma causa comum. Submetidos a formas diferentes de exploração, atuando em horários que impedem contatos prolongados e com os ganhos regulados por regras que estabelecem padrões diferenciados para calcular as rendas do trabalho, o conjunto dos trabalhadores enfrentará enormes dificuldades para fazer convergir numa pauta comum as demandas que o descontentamento de cada grupo coloca na ordem do dia. Desta forma, podemos ter grandes concentrações de trabalhadores, mas cujas reivindicações e necessidades não convergem para uma luta coletiva.
Mas isso não é tudo. As falas dos jovens revelam a presença de três elementos preocupantes. O primeiro deles vincula os perrengues diariamente enfrentados pelos trabalhadores de carteira assinada à CLT. Ganhar pouco, passar longas horas em ônibus lotados, falta de flexibilidade dos horários e uma relação desgastante com os superiores hierárquicos são alguns dos elementos que, de acordo com os depoimentos, desapareceriam com a escolha de uma atividade por conta própria.[14]
Como vimos através do estudo realizado pelo IBRE FGV, apenas uma pequena minoria dos autônomos pode dizer de boca cheia que ganha bem. Do mesmo modo, nada garante que um trabalhador por conta própria não dependa do transporte público, que não precise se esfolar em longas jornadas para cumprir a sua parte do contrato ou para reestruturar o próprio negócio e, ainda, que não passe por situações desgastantes com clientes, fornecedores e funcionários. Vários testemunhos de autônomos afirmam que, por estes mesmos motivos, viveram situações de esgotamento físico e nervoso que evoluíram para problemas psíquicos mais graves.[15]
Se, na linguagem juvenil, rejeitar o trabalho celetista é uma forma de mostrar a própria aversão a um modo de vida no qual as pessoas trabalham demais e são obrigadas a viver com pouco em função do que ganham, apontar a CLT como vilã transforma os direitos legais numa camisa de força que imobiliza os assalariados com registro em carteira numa opressão da qual é impossível sair. Fugir dela, e não combater os mecanismos e as formas que alimentam a exploração, se torna a tarefa principal...sem perceber que outras formas de exploração irão minar o sucesso almejado.
O segundo elemento é uma decorrência do primeiro. À medida que o êxito e o fracasso de um autônomo são essencialmente atribuídos às suas habilidades e à disciplina com a qual dirigirá o seu “negócio”, o mérito individual acaba ganhando a parte do leão. Ao inviabilizar qualquer reflexão sobre o contexto social no qual se movimenta o trabalhador por conta própria, esta perspectiva enterra qualquer ideia de justiça social e apresenta a luta coletiva como uma escolha contraditória e contraproducente. Passo a passo, a cultura que enaltece o empreendedorismo como libertação dos escravos da carteira assinada cria um ambiente onde só há espaço para saídas individuais, onde a disciplina auto imposta é vista como momento de liberdade e no qual lutar contra as desigualdades é se engajar em causas sem sentido.
Deste laboratório no qual o capital molda uma parte essencial do consenso social, sai um terceiro elemento que neutraliza o que sindicatos, movimentos e partidos progressistas consideram um avanço em termos de mercado de trabalho. À medida que a demonização da CLT ganha mais espaço nas redes sociais e os apelos dos influenciadores conquistam novos paladinos do trabalho por conta própria, o aumento das vagas com carteira assinada ganha as feições de um retrocesso.
Concretamente, as falas de governo, partidos e movimentos sociais progressistas enaltecendo e promovendo as vantagens da carteira assinada não só não atraem as atenções de quem se orienta pelas miragens do “negócio próprio”, como parecem aumentar as dimensões da escravidão que a maioria gostaria de eliminar com o trabalho autônomo. À medida que a carteira assinada saiu do imaginário das novas gerações como um passo fundamental para a independência econômica e se apresenta como um atestado de incompetência ou um motivo de vergonha, como mostrar a importância do crescimento das vagas formais numa realidade em que a grande maioria delas continua não garantindo o suficiente para o trabalhador e a sua família viverem dignamente?
Sendo assim, até que ponto as armadilhas plantadas pelo suposto papel libertador do empreendedorismo podem ser desarmadas pelas falas que se centram nas perdas dos direitos da carteira assinada? Será que só o fracasso levará quem almeja ser autônomo a colocar os pés no chão?
No momento em que escrevemos, só uma coisa é líquida e certa. Enquanto a maioria sonha em se emancipar graças a um trabalho por conta própria, a acumulação, liberada dos obstáculos colocados pelas lutas da nossa classe, avança a passos largos.
Emilio Gennari, Brasil, 13 de setembro de 2025.
1 Os dados citados foram extraídos da matéria publicada em: https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2025/08/20/por-que-os-jovens-pedem-mais-demissao-saiba-o-que-cada-geracao-valoriza-e-por-que-pensam-tao-diferente.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias Acesso realizado em 23/08/2025.
[2] O relatório completo encontra-se em: https://media.folha.uol.com.br/datafolha/2025/07/03/qcb2krmao-bneezyimiy-nacgupt5ebnhlqgfhvkxxg.pdf Acesso realizado em 28/06/2025.
[3] Resumimos neste capítulo o resultado de inúmeras conversas informais com pessoas de diferentes idades envolvidas em algum tipo de atividade por conta própria e com estudantes, além da observação atenta das formas pelas quais o empreendedorismo foi ganhando corpo e forma na sociedade brasileira. Recentemente, uma entrevista com a jornalista Natuza Neri trouxe à tona o caminhar de parte dos elementos citados. Você pode ouvir o conteúdo da entrevista através do site: https://open.spotify.com/episode/2MaBfAfbXTZoIorwy6Wp53?si=IEZ-UhKiQIuK8C48YDrvMg Acesso realizado em 30/07/2025.
[4] Dados publicados em: https://blogdoibre.fgv.br/posts/trabalhadores-autonomos-quem-sao-e-o-que-pensam
Acesso realizado em 28/06/2025.
[5] Dados divulgados em: https://static.poder360.com.br/2024/12/Taxa-de-nascimento-5-dez-2024.pdf Acesso realizado em 03/09/ 2025.
[6] Em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/29206-demografia-das-empresas-em-2018-taxa-de-sobrevivencia-das-empresas-foi-de-84-1 Acesso realizado em 10/09/2025
[7] Dados divulgados em: https://sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/a-taxa-de-sobrevivencia-das-empresas-no-brasil,d5147a3a415f5810VgnVCM1000001b00320aRCRD Acesso realizado em 03/09/2025.
[8] De acordo com os dados da PNAD-Contínua do segundo trimestre de 2025, por exemplo, os autônomos com CNPJ representavam 26.8%, mas, no mesmo trimestre de 2024, eram apenas 25,5% do total de trabalhadores por conta própria.
Em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-detalhe-de-midia.html?view=mediaibge&catid=2103&id=8214 Acesso realizado em 03/09/ 2025.
[9] Os dados do quadro foram copilados a partir do gráfico 2, publicado em: https://blogdoibre.fgv.br/posts/trabalhadores-autonomos-quem-sao-e-o-que-pensam Acesso realizado em 28/06/2025.
[10] Além das médias citadas, você encontrará dados mais detalhados no gráfico 4, publicado em: https://blogdoibre.fgv.br/posts/trabalhadores-autonomos-quem-sao-e-o-que-pensam Acesso realizado em 28/06/2025.
[11] Exemplos dos “microtrabalhos” aos quais nos referimos, com as respectivas remunerações podem ser encontrados em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c511zzgypwdo e em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cr781dv8m9mo
Acessos realizados em 06/09/2025
[12] Você pode encontrar mais elementos desta reflexão em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cr781dv8m9mo e em: https://outraspalavras.net/outrasaude/para-levar-a-saude-do-trabalhador-ao-centro-do-sus/ Acessos realizados em 06/09/2025.
[13] Um parecer jurídico sobre o tema pode ser encontrado em: https://ambitojuridico.com.br/motoristas-de-aplicativo-e-direitos-trabalhistas-em-caso-de-acidente/ Acesso realizado em 06/09/2025.
[14] Entre os materiais consultados apontamos:
- https://open.spotify.com/episode/2MaBfAfbXTZoIorwy6Wp53?si=xJGZ1gKGTY-DmmfHZjxjUw
Acessos realizados em 05/09/2025.
[15] Vários depoimentos citados nas matérias cujos links aparecem na nota anterior apontam, justamente, nesta direção.