quinta-feira, 29 de março de 2018

Defesa dos lobos contra os cordeiros



Poema para o assombro diante dos lobos que voltaram a mostrar os dentes e recomeçam a morder sem nenhuma razão plausível, sem nenhuma séria ameaça às suas alcateias. Tempos difíceis nos quais o sistema enfraquecido pelos seus próprios problemas internos aumenta a dose de violência para parecer forte.



Defesa dos lobos contra os cordeiros


Querem que o abutre coma miosótis?
O que exigem do chacal,
do lobo, que mude de pele? Querem
que ele mesmo extraia seus dentes?
O que é que não apreciam
nos comissários políticos e nos papas,
por que olham, feito burros,
o vídeo mentiroso?

Quem costura a faixa de sangue
nas calças do general? Quem
trincha, diante do agiota, o capão?
Quem pendura orgulhoso, a cruz de lata
sobre o umbigo que ronca de fome? Quem
aceita a propina, a moeda de prata,
o centavo para calar-se? Há
muitos roubados, poucos ladrões; quem
os aplaude, quem
lhes põe insígnias no peito, quem
é sequioso de mentiras?

Olhem-se no espelho: covardes,
temendo a fadiga da verdade,
sem vontade de aprender, entregando
o pensar aos lobos
um anel no nariz como adorno preferido
nenhuma ilusão burra o bastante, nenhum consolo
barato o suficiente, cada chantagem
ainda é clemente demais para vocês.

Ó cordeiros, irmãs
são as gralhas comparadas a vocês:
vocês se arrancam os olhos uns aos outros.
Fraternidade reina
entre os lobos:
andam em alcateias.

Louvados sejam os salteadores: vocês
convidam para o estupro
deitando-se no leito preguiçoso
da obediência. Mesmo gemendo
vocês mentem. Querem
ser devorados. Vocês
não mudam o mundo.

Hans Magnus Enzensberger

Eu falo dos que não falam (antologia), Editora Brasiliense, pag. 25,  1985

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