terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Capital e cansaço: Não é mais preciso punir? Basta Vigiar ou tá tudo junto e misturado.?








Já não basta vigiar e punir, o Capital usa o Sofrimento para no processo de acumulação possuir ainda mais o proletário, de corpo e alma se poderia dizer. Será que o Byung-Chul encontrou Focault?  Confira no instigante artigo que O Conselhodaclasse publica hoje. 





BYUNG-CHUL HAN ADENTRA EM TERRITÓRIO DE MICHEL FOUCAULT: A SOCIEDADE DO CANSAÇO NO ESPAÇO DO VIGIAR E PUNIR!

By Ricardo



Senta, que lá vem “estória”...

Imaginemos uma fábrica. Uma renomada, nacional, do ramo de produção de chapas, portas e painéis – tudo tendo aço como matéria prima. E imaginemos que nesta fábrica, para organizar a embalagem e facilitar o transporte destas chapas, portas e painéis, haja um setor de produção de paletes de madeira. E imaginemos ainda, que na equipe do setor de produção de paletes, haja um ajudante de cognome “Cabeção”.
Cabeção tem 24 anos de idade e vive em casa alugada com sua parceira – não se tem a informação se é em estado marital ou de concubinato – e com um filho de tenra idade. Em seu trampo, na referida organização, lhe é pago um salário/hora de aproximadamente R$5,50 para produzir paletes ao longo de uma jornada diária de oito horas. Meta de 400 para paletes “leves”; 230, quando tem de se fabricar os “pesados” – todos são pesados.
O dedo de cabeção permanece intacto, dentro do possível, após 24 anos de vida. Mas durante certa jornada, cabeção esteve cansado. Iniciou o turno anterior às 14h00; encerrou às 22h00. Levantou às 6h00; o filho tinha de estar na creche às 07h00. O mais sábio a fazer, após deixar o filho na creche, seria retornar para seus aposentos e dormir para o turno seguinte. A esposa trabalha também. Possuem despesas. Precisam cuidar do menino. Volta para o leito? Retoma o sono? Não. A empresa conta com um centro de educação, com profissionais capacitados para educar. Cursos de normas regulamentadoras de trabalhos realizados em grandes alturas, em espaços confinados, utilizando-se dessa ou daquela ferramenta... Tudo em prol da segurança; de um trabalho seguro – irônico né? Ensinamentos que podem torná-lo, de repente, um brigadista. Poderá cuidar dos companheiros de labor. Terá um acréscimo no salário: R$70,00... Duas caixas... 24 litros de leite para o filho. Quem sabe sobre para duas ou três latinhas. Gosta de uma gelada; é humano.
Horário do curso? Das 8h00 ao meio dia. Não sabe se volta para casa para almoçar, se permanece ali esperando o turno das 14h00. É fato: não dormirá. Mas ali estará; esforçando-se; estudando e trabalhando. Mantendo a família e a dignidade de um trabalhador.
Quanto ao processo de produção?... Bem... A equipe do setor é formada pelo operador – que ficará nas serras cortando os caibros e sarrafos nas medidas adequadas para a fabricação dos paletes; pelo empilhadeirista que reabastecerá as serras e as mesas de produção no momento em que se esgotarem os materiais então utilizados. E três ajudantes: um que ficará responsável por lançar e posicionar os caibros na mesa já ajustada e outros dois que se encarregarão de fazerem o mesmo com os sarrafos. E há o sistema de revezamento entre os ajudantes. Cada turno, em uma posição da mesa, assim, todos inevitavelmente passam pelos caibros.
Joga caibros, ajeita-os; joga sarrafos e ajeita-os. Cada um pega seu “pregador” pneumático e aí é só “rátátátá”... Depois, caibros e ajeita-os; sarrafos e ajeita-os. Pregadores e “rátátátá”... 400 vezes no turno.
No início do turno, cabeção reclama da canseira; é quinta-feira, porra. Começam a produção. Sua equipe produz os detestáveis paletes; 400 é a meta. É “rátátátá”. Duas ou três horas depois, seu dedo não está mais intacto.
Precisa do trabalho. Faz o que for necessário para manter seu emprego. Inclusive, pregar os pontos que não são de sua responsabilidade, mas de um de seus parceiros. Na correria, o prego atravessa o dedo do menino. O dedo está intacto... De repente, não está mais...
Vai ser culpado pelo acidente. Dane-se o contexto, a canseira, a quinta-feira, o curso, o menino na creche. Quem mandou fazer o trabalho do outro? Por que a correria? Pela meta?
Há os procedimentos de segurança para a execução de qualquer trabalho e manuseio de qualquer ferramenta ou máquina. Há também as normas padronizadoras de cada processo produtivo, que deixam claro o que cada membro de tal processo deve fazer no ato da produção. Seguindo-se a norma e os procedimentos de segurança, os riscos de acidente diminuem muito. Ele não seguiu normas de padronização da produção nem procedimentos de segurança: “a mão livre deve permanecer a uma distância de pelo menos 20 centímetros da mão que estiver manuseando o pregador”. Sendo assim... CULPADO...
Mas há algo mais... Algo não registrado nas normas de segurança nem nas padronizações dos procedimentos de produção... A necessidade de produtividade... De alcance e, de preferência, até de superação de metas... Necessidade esta, que já não mais é exigida a partir do sistema do vigiar e punir – de nosso velho amigo Foucault. Nãããooo... Em tempos de “flexibilização” do trabalho, de maior possibilidade de movimento individual e autônomo no novo mercado de trabalho, mesmo no contexto da indústria, agora o que conta é a dedicação do integrante do mercado; a iniciativa; o “profissionalismo” – mesmo para os que não possuem formação profissional.
Cabeção e todos os outros operários, não escaparam daquilo que o filósofo Germano-Coreano Byung-Chul Han chamou de Sociedade do Cansaço. Estamos no período da positividade; do sim a tudo. E, sobretudo, do sim ao trabalho – mesmo aos mais aviltantes empregos – já que este apresenta-se a nós, como maleável, como não forçado, como livre e até como lúdico, segundo o próprio pensador.
Em contexto industrial, nada há de lúdico, mas as cobranças já são menores A hierarquia permanece, mas para designações de funções que exigem mais ou menos intelecto ou conhecimento técnico e isso pouco ou nada envolve punições, apesar de ainda haver o vigiar, mais para premiações do que para castigos. O proletário dedicado, que produzir, que alcançar ou superar metas – que pode até quebrar recordes e ter seu feito noticiado no sistema de radiofrequência – quando presenciar – ou até promover – a queda de seu superior imediato, será alçado para o cargo seguinte e terá de desempenhar suas novas funções – caso haja a obrigatoriedade de “cobrança” de subordinados – do modo mais amigável possível. Mas é quase que certo que isso não será necessário. Seu subalterno produzirá muito, de forma rápida e de boa vontade.
 O trabalhador comum, em geral, não sabe que dois corpos não ocupam o mesmo espaço ao mesmo tempo, e assim, para dar conta de suas metas, jogará caibros ou sarrafos nas mãos de seus parceiros de função para manter seu ritmo e seu desempenho. Mas não por maldade. O movimento não é intencional, pensado, planejado... É automatizado, não observado, apenas executado. Se ao longo do processo produtivo, tiverem de se trombar, se trombarão. Dificilmente, um irá parar, raciocinar e esperar pela passagem do outro. Cada um terá em mente apenas o cumprimento de sua tarefa e pouco se importarão se vier a acontecer esbarrões de operário com operário. A produtividade tem de fluir.
E também tem de haver o aperfeiçoamento. Não o pessoal, o intelectual, o espiritual, tampouco o religioso – apesar do cristianismo predominante entre os operários – e nem o profissional, propriamente dito. Mas o do trabalhador cumpridor de tarefas, das que já cumpri e das que poderá vir a cumprir de modo autômato caso conquiste novo nível na hierarquia. O jovem cabeção assim o fez. Tinha de ser produtivo ao máximo e por isso “pregava muito” no ato da produção dos paletes e concorria com seus companheiros de mesa, ao posto de mais versátil “pregador”. E como os outros, procurava se diferenciar cursando os cursos que a todos eram ofertados e pela maioria cursados. E como tinha de cuidar da vida pessoal, cansava-se bastante, mas explorando a si – o coreaninho de novo – o máximo que podia. É bem possível que esteja aí, neste raciocínio, a gene de seu ferimento.
E quanto aos retardatários? Bom, quanto a estes, basta manterem baixo nível de absenteísmo, estarem de corpo presente e produzirem alguma coisa, que ali permanecerão. Pois mesmo em estado de incomoda improdutividade poderão ter extraída alguma mais-valia e até poderão servir de exemplos a não serem seguidos pelos trabalhadores dispostos a explorarem-se e cansarem-se no dia-a-dia do funcionamento organizacional.


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