terça-feira, 25 de outubro de 2022

Brasil: realidades e desafios do “Datapovo - Notas de Conjuntura

 

      

                                         

     

O resultado das eleições realizadas no dia 2 de outubro surpreendeu os institutos de pesquisa, deixou perplexos os setores progressistas e mostrou que a ultradireita brasileira conta com um apoio que nem ela esperava ter.

Como é possível que a população tenha elegido com uma votação tão expressiva figuras que se destacaram por atuarem na contramão do que seria esperado pelos Ministérios que ocupavam? 

Será que o povo já esqueceu a política criminosa levada adiante pelo Presidente da República durante a pandemia e a forte expansão da pobreza que marcou o seu mandato? (Emilio Gennari)





Brasil: realidades e desafios do “Datapovo1

 

 

            

O resultado das eleições realizadas no dia 2 de outubro surpreendeu os institutos de pesquisa, deixou perplexos os setores progressistas e mostrou que a ultradireita brasileira conta com um apoio que nem ela esperava ter.

 

Como é possível que a população tenha elegido com uma votação tão expressiva figuras que se destacaram por atuarem na contramão do que seria esperado pelos Ministérios que ocupavam? Será que o povo já esqueceu a política criminosa levada adiante pelo Presidente da República durante a pandemia e a forte expansão da pobreza que marcou o seu mandato?

 

O primeiro indício de que havia algo intrigante na leitura que o povo faz da realidade estava na distância entre o peso que as pessoas davam a determinados problemas sociais e as prioridades com as quais os setores progressistas disputavam o pleito. Desmatar, devastar terras e comunidades indígenas, ficar sem casa, ganhar salários baixos, trabalhar na informalidade, passar necessidade e ser submetido à brutalidade das ações policiais nunca ocuparam um lugar de destaque entre as principais preocupações da população.

 

Um segundo elemento guarda uma relação direta com o fato de as pesquisas qualitativas raramente trazem explicações abrangentes quanto aos critérios que levam os indivíduos a optarem por um determinado candidato. A possibilidade de retratar este universo demanda uma sensibilidade apurada para entender o que o povo realmente pensa e uma abertura capaz de captar os sentimentos que não se traduzem em palavras, tarefas que só podem ser desempenhadas com uma inserção que vai muito além dos contatos esporádicos dos entrevistadores e de alguns militantes dos movimentos com as periferias.

Mas, afinal, o que é que os setores progressistas não viram na hora de traçar as estratégias de campanha e projetar os resultados que esperavam alcançar?

Começaremos a responder a esta pergunta partilhando o conjunto de anotações e reflexões oriundas do diálogo direto com as pessoas, das entrevistas divulgadas pela mídia e dos estudos que se colocaram nossas mesmas indagações.

 

Trata-se de ensaiar alguns passos que ajudem a entender a complexidade do momento e a buscar os antídotos para o veneno que o bolsonarismo distribui sem cessar.

 

            1. O que a direita viu e usou sem pudores.

 

Numa análise divulgada em setembro de 2018, constatávamos que, para a maioria do povo simples, a crise vivida pela sociedade não deitava raízes no campo da economia, e sim na deturpação dos valores morais. As entrevistas e pesquisas disponíveis na época não revelavam sinais de que as pessoas viam algum nexo tanto entre as relações de poder e a formação dos modelos históricos de família, como entre as dificuldades econômicas e os problemas que levam à desintegração do núcleo familiar.2

Concretamente, a matar a família eram os casamentos homoafetivos, as diferentes identidades sexuais e a negação dos valores tradicionais pelas novas gerações que, com a sua falta de disciplina e de respeito, geravam uma infinidade de tensões desagregadoras. Por outro lado, o desemprego, a fome, a falta de moradia, os baixos salários, a insegurança de quem precisa ganhar hoje o que gasta amanhã não passavam de problemas sempre presentes e que poderiam ser resolvidos com a união do núcleo familiar, com a força da fé e a prática dos valores tradicionais. Daí que, se todos tivessem Deus no coração, recebessem uma educação no estilo antigo, se afastassem dos vícios, do crime e do que pode levar a família tradicional à sua desagregação, as crises deixariam de marcar os passos da vida coletiva. 

Quatro anos depois, não só constatamos que esta continua sendo a base a partir da qual um número crescente de pessoas interpreta os problemas sociais, como identificamos em vários setores uma repulsa ainda maior em relação a qualquer violação da chamada "ordem natural das coisas". O crescimento das igrejas evangélicas pentecostais e a ampliação das bases do catolicismo tradicional explicam parte desta evolução. Contudo, nenhuma pregação teria tanto efeito se ela não se alimentasse das experiências pessoais dos fiéis, criando assim um círculo pelo qual as vivências de cada um comprovam a pregação de padres e pastores na mesma proporção em que estas fortalecem e confirmam a importância dos valores tradicionais para as mudanças que ocorreram em suas vidas.

Concretamente, é inegável que muitos fiéis encontraram nas igrejas a ajuda de que precisavam para pôr fim à violência doméstica, para sair das drogas, abandonar o alcoolismo, o jogo e o crime, e isso levou a uma melhora das condições de vida, das perspectivas de futuro e das relações com os demais. A igreja transformou seu dia-a-dia, deu sentido e esperança diante das agruras do cotidiano e, por isso mesmo, estas pessoas têm o vivido como prova material de que a recuperação do indivíduo e o papel da família neste processo são capazes de vencer as dificuldades econômicas e de construir um mundo melhor

 

A solidez desta convicção é comprovada por um dado da pesquisa Datafolha, publicado no jornal El País, em 25 de setembro deste ano. Para 60% dos fiéis das igrejas evangélicas e dos setores do catolicismo tradicional é preferível votar em um candidato que coloca Deus acima de tudo e defende os valores da família tradicional a outros que apresentam boas propostas econômicas. E tem mais. O fato de Bolsonaro se definir cristão, ser duro contra o crime, condenar as drogas e o aborto consegue a proeza de fazer com que muitas pessoas que perderam parentes pelo coronavírus perdoem as atitudes nefastas por ele assumidas durante a pandemia. Basta isso para entendermos a importância crucial da tradição e do elemento religioso na visão de mundo de uma parcela importante da população.

 

Presente no senso comum das pessoas simples, esta ordem de prioridades foi incorporada e absolutizada pelos grupos de poder da nossa sociedade. O conservadorismo traduzido pelo lema "Deus, Pátria e Família" consegue matar dois coelhos com uma paulada só. De um lado, se constitui como apelo a valores que a ampla maioria dos indivíduos não tem a menor condição de questionar. De outro, trata-se de algo tão genérico e adaptável às conveniências do momento que não faltam possibilidades de entrar em sintonia com o papel que a fé dos simples desempenha na orientação de sua rotina diária. Desta forma, ao manter os olhos de muitos voltados ora para o céu, ora para os motivos que colocam em segundo plano a condução da economia e das relações sociais, a direita multiplica as possibilidades de aprofundar a exploração do trabalho e a devastação dos recursos naturais sem reações significativas por parte da população.

 

Mas será possível que ninguém percebe a contradição gigantesca entre um Bolsonaro que coloca Deus acima de todos e a sua defesa da tortura, da pena de morte, das execuções sumárias nas favelas e os discursos cheios de ódio contra quem não pensa e age como ele?

 

Infelizmente, não só é possível, como tem uma explicação que guarda uma relação direta com o cotidiano das pessoas. A seguir vamos esboçar alguns elementos que permitem visualizar tanto a possibilidade de ocultar as contradições entre o dizer e agir do Presidente da República, como calar os questionamentos que a sua incoerência pode gerar.

 

O primeiro deles deita raízes no que significa para o senso comum a necessidade de "eliminar o mal pela raiz". Longe de entender que o esforço deve se concentrar na destruição das contradições que sustentam a marginalização social e geram o caldo de cultura que favorece o crime organizado, para o povo simples, eliminar o mal implica em eliminar quem o pratica. Afirmada por quem se diz cristão, a ideia pela qual bandido bom é bandido morto é simplesmente absurda. A explicação demanda um pouco de paciência, mas ajuda a perceber as dificuldades que encontramos na disputa das ideias com o bolsonarismo e com o próprio povo.

 

Os evangelhos mostram claramente que Jesus condena o pecado, mas ama o pecador. Diante da mulher adúltera, o filho de Deus não diz "atirem pedras à vontade, pois esta mulher, além de pecadora, é uma destruidora de lares e Moisés tinha toda razão em dizer que gente dessa laia não merece compaixão". Ao contrário, Jesus salva a sua vida do apedrejamento, perdoa a adúltera e recomenda que ela não volte a pecar. Situações semelhantes ocorrem em outras passagens, mostrando que o cristão deve agir para que o pecador tenha as condições de se redimir e fazer o bem. Neste sentido, agir para eliminar alguém, quem quer que seja, pode ser tudo, menos cristão.

 

Ao falar para o mundo grego, os escritos do Apóstolo Paulo traduzem isso de forma ainda mais explícita quando afirmam que o corpo de qualquer ser humano é parte do corpo de Cristo. De consequência, matar, torturar, perseguir, impor qualquer sofrimento a um ser humano é matar, torturar, perseguir, fazer sofrer o próprio Cristo. Por isso, os cristãos defendem a vida, em qualquer momento, em qualquer situação, o tempo todo.

 

Parece claro que bastaria pensar nisso para perceber que atribuir a Deus a missão de matar, torturar, excluir e eliminar pessoas que, pelas convicções do Presidente da República e os interesses da ultradireita, não merecem misericórdia e compaixão, é transformar o ódio em virtude, a marginalização em mérito, a destruição do pecador e do diferente em dever ditado por Deus. Este passo faz com que o Bolsonaro e seus apoiadores encarnem a suprema manifestação do mal, claro, do ponto de vista do cristianismo.

 

Por que, então, há um verdadeiro abismo entre a fé que as pessoas afirmam professar e as ações que deveriam ser o espelho dos valores nos quais acreditam?

 

Além da “fragilidade da natureza humana” a nosso ver, uma das peças-chave está nos limites que as pessoas colocam às suas crenças religiosas. Concretamente, cada um quer um Deus que está ao seu lado, que conforta na angústia, protege do mal, dá uma forcinha para conseguir o sucesso almejado, mas não um Deus que mexe com o que foi conquistado, com os negócios dos quais nasce o bem-estar, ainda que manchados por uma série de injustiças, violências e abusos.

 

Não podemos esquecer que a ampla maioria das pessoas adapta Deus ao seu universo moral, às próprias necessidades, desejos de sucesso e projetos de vida a ponto de colocá-lo na obrigação de fazer o que lhe pede em troca de alguma oferenda. Ou seja, ao escolher uma determinada igreja, o fiel não busca uma orientação de vida que coloque em cheque o mundo de pensamentos e ações que faz seu dia-a-dia “render”, e sim que confirme e dê solidez às convicções que guiam os seus planos e as ações em andamento.

 

Basta escavar um pouco a camada superficial das afirmações dos que se autodenominam “bons cristãos” para descobrir o que elas, de fato, procuram ocultar com esse Deus customizado à imagem e semelhança das próprias demandas. À medida que erradicar o mal é sinônimo de bandido bom é bandido morto, ninguém estranha que esta “solução definitiva” seja aplicada a qualquer caso, independentemente da sua gravidade. Mas, quando ponderamos a relação entre os valores materiais e o preceito cristão de defender a vida incondicionalmente, percebemos que o diabo mora nos detalhes. Ninguém duvida, por exemplo, que roubar o celular de uma pessoa coloca o criminoso do lado do mal. Contudo, se furtar o aparelho é fazer algo errado, mas matar para recuperá-lo é aceitável, significa que a vida cedeu o lugar à propriedade como aspecto mais sagrado do universo de convicções pessoais ao qual Deus precisa se adaptar.

 

Esta convicção tão comum entre a população ganha tons bem mais perversos quando os grupos de poder afirmam que todos devem andar armados para defender a si próprios, suas famílias e as propriedades que possuem de qualquer pessoa que venha ameaçá-las. Obviamente, ninguém questiona a que preço esta acumulação aconteceu, quantos país e mães de família foram explorados e depauperados para que poucos se apropriassem das riquezas que não produziram e nem mesmo como a marginalização dos empobrecidos alimentou a violência e o crime diante da impossibilidade de conseguir por outros meios os recursos de que precisavam para sobreviver. Grandes e pequenos proprietários, ricos e pés-rapados que se vangloriam de suas merrecas, cristãos de qualquer denominação e igreja, fazem questão de ocupar seu lugar nas fileiras do contingente que defende a pena de morte, deseja se armar para proteger o que tem, mas não move um dedo para eliminar as injustiças que degradam e violentam a vida de milhões de seres humanos.

Ou seja, a defesa da vida vale apena em situações restritas que não afetam a propriedade, como no caso do aborto. Para todas as outras, não faltam armas, balas, matadores de aluguel, ameaças e execuções tanto daqueles que roubam, como daqueles que denunciam quanto a vida da coletividade é devastada pelos interesses de poucos. Claro que, para colocar o coração em paz, sobram bênçãos, terços, orações, cultos e rituais que transformam a prosperidade em benção de Deus e apontam os problemas sociais como fruto da ação de um demônio que, por sinal, costuma agir muito entre os pobres, mas nunca entre os grupos de poder.

 

Fizemos esse longo trajeto para mostrar, de um lado, a dificuldade de compreender o universo do povo por parte de quem pede, inocentemente, ao Lula de convencer os evangélicos a votarem no PT. E, de outro, a ingenuidade de uma militância que acredita conquistar corações e mentes graças a um simples encadeamento lógico de pensamentos e princípios alheios à realidade da qual se alimentam as convicções populares.

 

Contudo, esta é apenas uma parte do arcabouço que o bolsonarismo vem montando desde as eleições de 2018 e que, nos últimos quatro anos, foi capaz de envolver milhões de pessoas que estão na base da pirâmide social e sem cujos votos a ultradireita não teria chegado aonde chegou. No próximo capítulo, vamos esboçar as linhas mestras da estrutura que possibilitou a consolidação do bolsonarismo no meio popular.

 

            2. O mundo paralelo que oculta o Brasil real.

 

Ao que tudo indica, as medidas econômicas com as quais Bolsonaro procurou aumentar a aprovação do seu governo, por si só, não seriam suficientes para levá-lo ao segundo turno das eleições com a votação expressiva que ele teve. Do mesmo modo, está claro que os apelos a Deus e aos valores tradicionais dialogam com um setor específico da população, mas não têm o mesmo peso entre as pessoas que não frequentam nenhuma igreja, que construíram famílias que em nada se assemelham às tradicionais ou que, apesar de serem vítimas do racismo, da homofobia, do machismo e da violência doméstica votam para reelegê-lo.

Então, como explicar o apoio que ele recebeu de setores contra os quais seus discursos e ações sempre se posicionaram?

 

Olhando a trajetória construída pelo bolsonarismo, temos a clara impressão de que o conjunto de elementos utilizados para ganhar as eleições de 2018 construiu as bases sobre as quais o atual Presidente da República, os ministros do seu governo e os grupos que servem de caixa de ressonância de seus atos e palavras teceram a trama de um mundo paralelo ao Brasil real.

 

Imagens, mensagens, entrevistas, movimentos de rua, frases a efeito, soluções salvadoras e ameaças que alimentavam o medo de um futuro mais difícil bombardearam a razão, reduziram a ciência a uma opinião qualquer e transformaram suposições em fatos. A enxurrada de meios com os quais o bolsonarismo deturpou a realidade e criou polêmicas sem fim levou um contingente expressivo de pessoas a embarcar numa realidade que não conta com nenhuma base material comprovável.

 

Quanto mais Bolsonaro e seus seguidores conseguiram calar os gritos do Brasil real, mais emplacaram o mundo paralelo no qual, sem a menor necessidade de coerência, se definiam o certo e o errado, os inimigos e os aliados, quem era do bem e aqueles que queriam o mal para o país. Ao alimentar esta falsa realidade, os bolsonaristas criaram o caos, mantiveram as adesões dos mais fervorosos, apontaram o judiciário e os limites da legislação como obstáculos a serem removidos e convocaram todos a participar de uma cruzada destinada a romper as amarras que impedem o exercício da liberdade individual em todos os seus aspectos e independentemente das consequências que produzem.

 

No meio popular, a incorporação dos elementos deste mundo ocorria à medida que as pessoas encontravam neles as explicações e os sentidos dos acontecimentos que estavam em sintonia com suas próprias crenças e percepções e viam nas ações presidenciais as expressões fervorosas que traduziam parte dos seus próprios valores. Quanto mais esse processo dava novos passos, mais os indivíduos perdiam o contato com o mundo real, se sentiam confortáveis em sua omissão diante dos problemas sociais e abandonavam qualquer reflexão crítica que pudesse devolvê-los à realidade material.

 

A nosso ver, isso se deve, fundamentalmente, a ação simultânea de dois fatores. O primeiro deles foi introduzido desde o início de 2019, quando o Presidente da República e os ministros do seu governo deram vida a uma sequência ininterrupta de polêmicas em relação a uma grande quantidade de temas. A velocidade com a qual uma questão se sobrepunha à anterior comprometia a capacidade de reação dos parlamentares, das instituições e dos movimentos organizados da sociedade civil. Quando as respostas destes atores começavam a aparecer, a polêmica já era outra e os novos assuntos simplesmente enterravam os velhos na vala comum do esquecimento, deixando-os sem resposta.

 

Somente quando os absurdos levavam a momentos de forte rejeição (como no caso dos protestos de maio de 2019 e dos que foram organizados após as ameaças de golpe em maio-junho de 2020), o governo recuava quanto bastava para que o silêncio deixasse as manifestações de descontentamento falando sozinhas. Por outro lado, à medida que os protestos nunca atingiram os interesses econômicos dos grupos de poder, que o Congresso nunca pautaria o impeachment do Presidente e que os militares não criticavam suas ações, não havia nenhuma razão para se preocupar excessivamente com eles.

 

O segundo elemento crescia à sombra do primeiro e o alimentava com os resultados que produzia. A identidade com o bolsonarismo, e o consequente acesso ao mundo paralelo, não tinham como base nenhum programa econômico ou político-partidário em volta do qual se discutiam o projeto de país e quem pagaria a conta das medidas que estavam sendo adotadas. Ao contrário, esta construção era cuidadosamente levantada através do dialogo com os sentimentos da papulação, da manipulação de suas emoções e, sobretudo, do medo. Pouco a pouco, as pessoas aceitavam como única verdade a que fazia seus corações pulsarem na mesma frequência ditada pela identidade com o bolsonarismo.

Podemos verificar a eficácia deste conjunto de elementos na dedicação com a qual os moradores do mundo paralelo partilhavam as "descobertas" veiculadas pelas notícias falsas com o círculo de amigos e conhecidos mais próximos. Quanto mais tenebroso e assustador era o fantasma que tomava conta dos seus pensamentos, mais as pessoas sentiam que estavam participando de uma missão que levaria mais gente a conhecer a “verdade verdadeira”, a descobrir interesses ocultos, a desmascarar supostas conspirações e a não se deixar enganar pelos acontecimentos do mundo real. Neste contexto, duvidar da realidade paralela ou aceitar qualquer crítica vinda de fora era tido como sinônimo de conivência com o que destrói a liberdade de expressão, a Pátria, a família e a religião.

 

A impermeabilidade dos seguidores do bolsonarismo leva a crer que não são poucos os que estão no limiar do fanatismo. E, aqui, o problema mais sério está no fato de que não é possível convencer um fanático de coisa alguma, pois suas crenças não se baseiam em evidências, mas tão somente nos elementos do seu mundo e nas expressões com as quais se identifica. Basta olhar, por exemplo, o que está ocorrendo em várias igrejas do país.

 

Na tentativa de forçar a votar no Bolsonaro os 4 em cada 10 evangélicos que se recusam a fazê-lo e os cristãos das igrejas mais tradicionais que criticam o bolsonarismo, os líderes religiosos destas instituições não se limitam a ameaçá-los individualmente com os castigos divinos, mas chegam a puni-los com a exposição a situações constrangedoras no interior das celebrações e com a expulsão dos seus templos. Ou seja, em nome da fé, da família, da liberdade de culto e dos valores cristãos, os próprios padres e pastores se encarregam de realizar hoje as perseguições contra os fiéis que atribuem a uma eventual vitória do Lula no segundo turno das eleições.3 E isso com a convicção de estar contribuindo com a missão de deter o comunismo e o império do mal da qual o atual Presidente teria sido encarregado por Deus. Se isso não é fanatismo...então é loucura...

 

A única chance de esvaziar a bolha do mundo paralelo no qual muitos vivem e pensam o cotidiano se apresenta quando a realidade atinge diretamente as suas próprias vidas, submetendo suas crenças a uma verdadeira prova de fogo. Ainda assim, temos a impressão de que a resistência a voltar ao mundo real, que costuma ser cruel com qualquer devaneio, tende a se manter até que o mundo paralelo no qual acreditam desaba sob o peso da sua própria inconsistência. Contudo, este momento traumático, por si só, não garante que tomem consciência dos enganos nos quais incorreram e que optem por uma nova escala de valores.

 

Ou seja, estamos diante de uma situação que, ao envolver indivíduos das diferentes classes sociais, credos religiosos, gêneros e etnias, promete dar muitas dores de cabeça, mesmo que Bolsonaro não seja reeleito. Por isso, para vencer a ultradireita não basta condená-la como fascista (algo que as pessoas comuns não fazem a menor ideia do que seja), mostrar suas mazelas e nem apenas virar os votos que hoje buscam reeleger o Bolsonaro. É preciso entender os estragos que o mundo paralelo produziu na leitura que as pessoas fazem da realidade e como estes mesmos estragos seguirão alimentando a oposição ao governo Lula, caso vença e consiga assumir a Presidência da República.

 

O bolsonarismo, que é muito maior do que o Bolsonaro, entrou nos poros da sociedade, permeia a forma pela qual muitas pessoas interpretam o mundo e continuará se espalhando, independentemente dos resultados do segundo turno. As eleições de 2 de outubro mostraram apenas que, para muita gente, o pensamento da ultradireita significa muito mais do que nós gostaríamos.

 

Para combatê-lo, é necessário que os setores progressistas entendam as razões da raiva, da frustração, do medo e os anseios das pessoas que criaram as condições para que o bolsonarismo se enraizasse no senso comum e se mantivesse vivo, apesar da destruição com a qual Bolsonaro construiu um país para poucos. Entender como e por que nascem estes sentimentos, mapear os aspectos das relações econômicas, políticas e sociais que estão envolvidos em sua produção e a mescla de angústias e esperanças que abriram alas para a extrema direita fazer o seu jogo é um passo tão urgente quanto imprescindível.

 

Mergulhar no meio popular para ouvir e entender “o sentir do povo” diante da realidade vai demandar tempo, desprendimento, energias e paciência, mas é o único caminho que pode nos fornecer os elementos sem os quais não conseguiremos encontrar um antídoto para o veneno de gosto doce e efeitos amargos que a ultradireita distribui gratuita e generosamente no país inteiro.

 

            Emilio Gennari, 18 de outubro de 2022.

 

 

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(1Para escrever este texto, além das reflexões e anotações recolhidas ao longo dos últimos 6 meses, lançamos mão da leitura do livro de Giuliano da Empoli, Engenheiros do caos, Ed Vestígio, São Paulo, 2019 e de:

https://elpais.com/ideas/2022-09-25/evangelicos-el-codiciado-voto-que-puede-decantar-las-elecciones-en-brasil.html

https://elpais.com/internacional/2022-09-25/leandro-vieira-a-un-proyecto-equivocado-de-brasil-le-interesa-transformar-la-cultura-en-algo-banal.html

https://elpais.com/internacional/2022-09-24/lula-y-la-izquierda-brasilena-suenan-con-una-victoria-en-primera-vuelta.html

https://elpais.com/internacional/2022-09-26/ultimos-rezos-por-la-victoria-de-bolsonaro-oh-senor-deten-la-avalancha-del-mal.html

https://elpais.com/internacional/2022-10-03/las-elecciones-en-brasil-en-seis-claves.html

https://elpais.com/internacional/2022-10-03/el-bolsonarismo-exhibe-su-fortaleza-y-el-congreso-de-brasil-seguira-con-mayoria-conservadora.html

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63111639

https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-63126278

https://elpais.com/internacional/2022-10-03/vencer-al-bolsonarismo-va-a-ser-mucho-mas-dificil-de-lo-que-imaginabamos.html

https://elpais.com/internacional/2022-10-04/las-urnas-dan-a-bolsonaro-un-enorme-poder-en-el-congreso-y-los-estados-pese-a-la-victoria-de-lula.html

https://elpais.com/opinion/2022-10-04/brasil-no-resuelve.html

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63142103

https://datafolha.folha.uol.com.br/opiniao-e-sociedade/2022/08/33-tiveram-comida-insuficiente-em-casa.shtml

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62668831

https://elpais.com/internacional/2022-10-09/el-rincon-de-brasil-donde-mas-triunfa-bolsonaro.html

Acessos realizados entre 01 de julho e 06 de outubro de 2022.

 

(2) Estamos nos referindo ao texto "O que o povo vê em Bolsonaro", disponível em: https://drive.google.com/file/d/1KzIfaGIrVvI1LzRbJqH0_WYn_NJ2uGGB/view?usp=drivesdk

 

(3) A reportagem completa sobre este tema encontra-se em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63285936 Acesso em 18/10/2022.

 

 


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