Se você é estudante nas escolas públicas já deve ter ouvido um milhão de vezes dos seus professores, dos pais, dos palestrante nos cursos de motivação e preparação para o trabalho, nos documentários na TV e até no Jornal nacional: - Estude menino, o mercado de trabalho está muito competitivo, sem qualificação profissional você não conseguirá um bom emprego. Se você não ganha bem é porque não tem formação.
Segundo a opinião da maioria dos responsáveis pela educação e formação profissional e dos especialistas em recursos humanos, bem como, da população em geral, o desemprego e os baixos salários são fruto da baixa qualificação e da formação precária da mão de obra.
Qual educador, professor@ ou gestor, não usou este argumento para convencer os estudantes a serem mais estudiosos e dedicados? Pois bem, você terá uma grande surpresa ao ler o artigo: Fracasso Escolar: Acidente ou construção social de Emílio Gennari. Segundo o autor, ao contrário do que se pensa, na primeira década do século XXI, no Brasil, o maior número de empregos criados foi para ocupações que exigiam menor qualificação. Quanto maior a qualificação profissional, quanto mais alto o nível de exigência menor foi número de vagas oferecidas.
Sua pesquisa indicou um fato corriqueiro na indústria, comércio e serviços, etc, a saber, a demissão do trabalhador mais qualificado ou com formação universitária, com doutorado e a substituição destes por profissionais com menor formação. Como disse o filósofo, o que os nossos olhos veem costuma ser o mais falso. Tem que procurar ver com "o olho da mente".
Leia abaixo o artigo completo e "se surpreenda". Nele você encontrará esta e outras revelações.
A surpresa fica por conta dos dados de 2011 e 2012
relativos à criação/supressão de vagas por faixa salarial no que é o saldo
positivo final de postos criados em cada ano. De acordo com o estudo da LCA
Consultores Associados, cuja base de cálculo é dada pelas vagas criadas no ano
em curso e comunicadas ao CAGED no prazo correto, constatamos que: [8]
Emilio Gennari
Fracasso escolar:
acidente ou construção social?
Ao reproduzir... cite a fonte.
Índice:
Introdução 03
1. O poder
como teia de relações 04
2. Duas décadas de reestruturação produtiva no
Brasil 07
3. Há vagas, mas não trabalhadores para ocupá-las? 13
4. Famílias e alunos no olho do furacão 18
5. Da “viração” dos pais à “vida loka” dos filhos 22
6. Quando tudo parece não ajudar... 28
7. Educação e qualificação para o trabalho: pistas
para uma reflexão 33
Introdução.
Na
maioria das vezes em que a escola pública é objeto de debate, nos deparamos com
uma visão que restringe a origem de seus problemas à relação entre pais, alunos
e docentes. Convencidos de que a educação é a pedra fundamental da sociedade,
nossos três atores acreditam piamente que, com um simples esforço de vontade,
as dificuldades iriam sendo resolvidas e os alunos de hoje seriam as pessoas
bem-sucedidas de amanhã.
Ao
isolar suas preocupações do contexto sócio-econômico em que vivem, não só
descarregam um no outro a própria insatisfação, como tornam invisível o
elemento que, a nosso ver, forja as condições que levam ao fracasso escolar: as
relações de poder. Por isso, a perspectiva que orienta nosso olhar para a
realidade não parte da escola, mas da reestruturação produtiva que vem sendo
moldada no Brasil a partir dos anos 90.
A
preocupação central da análise que aqui iniciamos pode ser expressa através de
algumas perguntas: de que trabalhador/a o sistema precisa para dar conta das
necessidades da produção e garantir a acumulação de poucos à custa do suor de
muitos? Quanto e o que cada empregado/a, a depender da sua função, deve
conhecer para ser produtivo sem que o saber adquirido se torne uma ameaça? Como
oferecer uma escola para todos sem que a população que dela participa aproveite
os conteúdos, valores, idéias e critérios de análises, úteis à geração da
riqueza, para questionar os passos de quem dirige a vida em sociedade?
Questões
como estas ultrapassam os muros das instituições de ensino, ampliam os
horizontes nos quais devemos procurar respostas convincentes para os dilemas da
escola, em geral, e do fracasso escolar, em particular. Longe de excluirmos a
priori o papel e os limites das estruturas físicas, da formação e do desempenho
dos docentes, do perfil das famílias e dos alunos, apenas entendemos que uma
compreensão profunda do que vem ocorrendo em sala de aula deve, em primeiro
lugar, centrar suas atenções nas relações de poder que disputam e definem a
educação na sociedade. São elas que moldam o contexto em que se inserem as
escolas e determinam o patamar de conhecimentos acessíveis aos diferentes
níveis da pirâmide social.
Sabendo
disso, a análise do fracasso escolar não pode fugir de outras questões
igualmente importantes: de quem depende a mudança que se faz necessária para
que a classe trabalhadora encontre na educação parte dos instrumentos da luta
contra a exploração? De um Estado a serviço das empresas? De organizações
filantrópicas que, nascidas no seio da elite ou dos setores médios da
sociedade, partilham os interesses e as diretrizes dominantes? Ou de uma
consciência crescente pela qual a mudança só acontece quando nós, trabalhadores
e trabalhadoras, a fazemos acontecer?
É com
este espírito que convidamos você a caminhar pelas páginas que seguem e a
entrar neste debate.
Emilio Gennari. Brasil, 1º de outubro
de 2013.
1. O
poder como teia de relações.
Quando falamos em “poder”, não
estamos nos referindo a um objeto, a uma coisa, a algo que se manifesta da
mesma forma em qualquer lugar do mundo e pode ser definido por características
universais. Por “poder” entendemos uma prática social construída historicamente
e cujas feições dependem de relações presentes no campo da economia, da
política e da cultura de um determinado ambiente, em dialogo com o que ocorre
em âmbito internacional, no país e diante das reações que a classe trabalhadora
vai esboçando ao longo da história.
Neste contexto, o Estado não pode
ser entendido como um bloco monolítico e nem ser reduzido às funções
repressivas ou coercitivas dos aspectos que ameaçam a ordem estabelecida. Em
seu interior atuam instâncias heterogêneas e interesses contraditórios de
grupos que podem se somar ou entrar em choque a depender da correlação de
forças que se estabelece em tempos e ritmos ditados pelo desenrolar dos
acontecimentos.
O resultado deste embate é a necessidade de planejar e reorganizar
constantemente formas de intervenção que constroem o consenso em torno de
medidas que visam manter a ordem e administrar seus conflitos rumo ao
aprimoramento do processo de acumulação. A capacidade de coordenar e controlar
o cotidiano das relações sociais, portanto, se concretiza a medida que o
próprio Estado se articula com poderes locais, cujos interesses imediatos podem
se diferenciar dos que são apresentados por outros grupos dominantes. Agindo em
diferentes níveis e com a autonomia necessária, as relações de poder penetram nas
pessoas, moldam sua visão de mundo, definem uma leitura do passado e do presente,
delineiam as perspectivas de futuro e fundamentam as formas de visibilidade e
ascensão social que influenciarão a sociedade.
A necessidade de universalizar sua visão de mundo para criar o consenso
possível leva quem dirige os rumos da produção a fazer com que o povo simples
pense e aja de acordo com parâmetros que passam longe da realidade em que vive,
dê sua adesão ao que fortalece a exploração e reduza as chances de conflito
entre as classes. A estabilidade do equilíbrio de forças conseguido será
proporcional à capacidade de integrar os setores subalternos nos projetos das
elites, renovando assim a confiança e as esperanças da população no que o
sistema pode oferecer.
Para dar conta desse desafio no âmbito da produção, os empresários
tratam, literalmente, de “fabricar” indivíduos cujos saberes, idéias e formas
de interpretar a realidade contribuam para aprimorar as relações de poder
existentes e ocultem seus interesses atrás de valores e padrões de comportamento
aceitos como próprios das “pessoas de bem”. Neste esforço, onde nada é deixado
ao sabor do acaso, o saber necessário ao exercício da profissão deve ser
condizente com as habilidades, competências e atitudes consideradas adequadas
ao desempenho das tarefas solicitadas.
As noções a serem incorporadas e a confiabilidade exigida ora pedirão
conhecimentos básicos, obtidos no ensino fundamental, na convivência com um
grupo ou na experiência pessoal, ora conteúdos de cursos profissionalizantes ou
das disciplinas acadêmicas, mas estarão sempre aliados a doses variáveis de
saber prático. O processo de formação da força de trabalho mobiliza níveis
diferenciados de conhecimentos e contatos pessoais num emaranhado de possibilidades
onde a submissão e a resistência às relações de poder se mesclam sem cessar.
Desta forma, a escola é apenas um dos terrenos em disputa na medida em
que dela podem sair indivíduos que aceitam se encaixar em moldes
pré-estabelecidos ou que são capazes de dizer “não” à ordem. Serão as
contradições do real e os conhecimentos que permitem entender sua profundidade a
questionar as certezas do senso comum e a proporcionar a indignação que levará
o sujeito a optar entre os convites à resignação, à paciência, à submissão ou pela
busca do que se opõe a esta realidade.
Saber e poder são dois lados da mesma moeda. O poder sempre demanda a
construção de um campo do saber, do mesmo modo em que o saber pode dar origem a
novas relações de poder, assegurar seu exercício e evolução ou freá-las e
rompê-las. Não há saber neutro possível. Suas origens deitam raízes no complexo
emaranhado de relações que buscam adequar, conformar e fazer caminhar as
pessoas de acordo com a ordem dominante, mas este mesmo saber, ao ampliar a
bagagem cultural e ao iluminar a realidade, pode se tornar subversivo e
perigoso. De consequência, canalizar e limitar as possibilidades de adquirir
conhecimento é algo estratégico para as elites e a razão pela qual não poupam
esforços em controlar o acesso à cultura das classes sociais. Apoderar-se das
mentes de jovens e crianças equivale a colocar uma hipoteca sobre o seu futuro,
a aprisionar seu desenvolvimento, a contribuir para que tudo mude para que tudo
continue como está, dando a impressão de que a sociedade caminha rumo a um
futuro promissor para todos.
Esta façanha pode ser obtida dosando o acesso ao saber sem que as formas
nas quais este controle se concretiza pareçam violar a suposta igualdade de
oportunidades reafirmada a cada instante para que o sujeito deposite suas
esperanças no sistema. A impossibilidade de definir por decreto que escolas se
destinam aos pobres e quais vão formar os membros da elite não é um problema
pra quem controla as relações de poder. A desigualdade econômica se encarrega,
por si só, de negar o que a igualdade de direitos parece colocar ao alcance de
todos.
A simples possibilidade de pagar, ou não, uma mensalidade e o valor com
o qual uma família pode arcar são elementos suficientes para definir que tipo
de conhecimento estará à disposição do aluno e restabelecer a hierarquia de
quem, tendo acesso ao melhor ensino, se prepara para pertencer à classe
dirigente. Basta isso para trazer de volta as discriminações que a
universalização do direito à educação parecia ter expulsado. Concretamente,
trata-se de manter as pessoas na escola sem que elas tenham os elementos que
permitem desvendar a realidade e se apropriar dela para mudá-la.
A peça-chave que permite ocultar esta determinação está em fazer com que
as doses de conhecimento dispensadas sejam acompanhadas da convicção de que, no
fundo, tudo depende unicamente do esforço pessoal, da vontade de vencer do
indivíduo, da sua luta pela empregabilidade e do sacrifício que se dispõe a
fazer para merecer o lugar que almeja. Algo, portanto, que transfere ao sujeito
a responsabilidade exclusiva de construir suas possibilidades de futuro.
Na medida em que este biombo ganha consistência, a percepção das
injustiças sociais é ofuscada pela idéia de que alçar vôos maiores é algo que
só depende de uma vontade individual e intransferível. O consenso construído em
volta desta percepção bloqueia a indignação, turva a compreensão do cotidiano,
dificulta a luta por mudanças e transforma vítimas de injustiças sociais em
culpados do seu próprio destino.
As breves considerações que traçamos até o momento ajudam a entender
quatro aspectos que costumam criar confusões nos debates sobre a escola:
1. Ao
contrário do que se imagina, a posse de certa bagagem cultural por parte de
quem está na base da pirâmide social é tida como desnecessária e perigosa pelas
relações de poder estabelecidas. Para ocupar um lugar no mercado do trabalho, é
importante que o sujeito seja portador de saberes e competências compatíveis
com o desempenho das suas funções e não que tenha conhecimentos que extrapolam
esse âmbito. Quanto maior o número de vagas com baixa ou nenhuma qualificação,
mais a bagagem cultural pode se restringir a elementos básicos o que faz
parecer desnecessária parte substancial das informações adquiridas na escola.
Mas isso não é tudo. O acesso à cultura permite ter melhores condições
de compreender a vida em sociedade, podendo despertar indignação e ações de
rebeldia contra quem pede sacrifícios sem fim em troca de um futuro incerto.
Sem uma base para ampliar a compreensão da realidade, o indivíduo não consegue
vislumbrar a hipótese de que pode haver uma alternativa à ordem existente, mas
tende a se resignar e a desqualificar as propostas de mudança que remam em
sentido contrário aos
acontecimentos. Por isso, o empobrecimento cultural da classe trabalhadora não é
um efeito colateral dos novos tempos e sim uma necessidade do sistema.
2. Não há
“uma” escola que apresente nacionalmente os mesmo problemas e desafios. Há,
sim, “escolas” que, em suas semelhanças, escondem diferenças produzidas pelas
necessidades dos grupos locais de poder com base nas características da força
de trabalho a ser empregada. Começamos a visualizar com clareza os vínculos que
se estabelecem entre as necessidades da produção e o ambiente escolar à medida que
respondemos às perguntas que seguem:
a. De que
competências e saberes precisam as atividades econômicas locais e os
investimentos a serem introduzidos no futuro próximo?
b. A que instituições
é entregue a tarefa de preparar a força de trabalho a ser empregada?
c. Quanto
custa e em que prazos é possível formar localmente empregados à altura das
demandas do mercado? Será que para as empresas não é mais barato e confiável
trazer de fora quem ocupará as funções que exigem qualificações ou competências
específicas?
d. Como as
demandas da economia se relacionam, ou entram em choque, com a classe política
que administra as instituições locais?
e. De que
forma as mudanças na base econômica da sociedade alteram o senso comum da
população a fim de ganhar seu apoio às necessidades por elas introduzidas?
f. Em que
direção os interesses da elite estão conduzindo a relação com a escola?
Como
estamos dizendo desde o início, trata-se de inverter o ponto de partida da
análise do fracasso escolar. É na produção da riqueza, e não fora dela, que
encontramos as explicações para a defasagem entre os discursos oficiais sobre a
educação e a realidade com a qual nos deparamos diariamente nas instituições de
ensino.
3. Em
geral, o que os empresários chamam de “bom trabalhador” é aquele que tem olho
vivo, mão ágil e aptidões que atendem às exigências do posto para o qual foi
contratado. A depender do setor da economia, estarão incluídas, em maior ou
menor grau, certa capacidade de disciplinar o próprio corpo, resistência
física, determinado nível de concentração, saberes específicos, flexibilidade
para ampliar o rol de tarefas, obediência e confiabilidade. Os patrões sempre desejam
alguém que seja politicamente dócil e economicamente rentável. Melhor ainda se,
a depender do cargo e da filosofia da empresa, o funcionário for assumindo as
demandas do trabalho como metas pessoais ou cultive, ao menos, sentimentos de
gratidão e sagrado temor em quem paga o seu salário. Definido o patamar de
integração desejado, é desenvolvido um conjunto de meios que visa elevar a
capacidade de o empregado se adaptar às demandas da produção, aguentar sempre um
pouco mais e acreditar que o sofrimento experimentado permite superar seus
limites ou não passa de algo próprio do ofício. Ao injetar ora uma sensação de
autorrealização, ora um medo que paralisa o descontentamento, consegue-se
dissuadir os funcionários da tentação de utilizar seu conhecimento para dar
vida a expressões de rebeldia.
4. A
história revela que a tarefa qualificada de hoje terá o conhecimento dos que a
desempenham incorporado aos equipamentos que nascerão da evolução tecnológica,
ao mesmo tempo em que as próprias inovações criarão funções para as quais
costuma haver uma momentânea escassez de profissionais. O tecelão do século
XIX, por exemplo, foi substituído pelo tear de lançadeira operado por mulheres
e crianças que nunca haviam pisado numa fábrica, mas a manutenção do
equipamento demandava profissionais não imediatamente disponíveis. O torneiro mecânico
dos anos 70 e 80 vê seu saber inserido em máquinas automatizadas cuja
operacionalização pode ser feita por pessoas minimamente treinadas, mas demanda
programadores preparados, não necessariamente próximos ao local onde o
equipamento foi instalado. Do mesmo modo, a recente implantação no Brasil de
empresas que atuam na área de micro-eletrônica apresenta um volume enorme de
funções com baixas competências, mas evidencia a falta de engenheiros
especializados na produção de processadores, razão pela qual devem trazer
profissionais do exterior a custos maiores até que os locais sejam considerados
aptos a assumirem seus postos.
Nesta altura,
podemos facilmente perceber que, em cada país, região e período histórico, a
adaptação dos conhecimentos veiculados na escola guarda estreita ligação com a
produção instalada e as competências exigidas pelo nível tecnológico dos
investimentos locais. De consequência, não há como os ensinos fundamental,
médio, superior ou profissionalizante, se anteciparem a este processo na medida
em que dependem de suas definições para alterarem currículos e introduzirem
saberes que atendam às novas demandas do mercado. E isso, por sinal, só pode
ser feito com certo atraso.
Se isso for verdade, temos agora a obrigação de passar do geral ao
particular e de verificar nele se o que afirmamos encontra a devida
correspondência em nosso país.
2.
Duas décadas de reestruturação produtiva no Brasil.
Numa rápida descrição dos
acontecimentos, podemos dizer que os anos 90 são marcados por uma pesada
desestruturação das relações de trabalho, pela legitimação dos contratos por
tempo determinado, da terceirização e da renda variável que contribuem
fortemente para a diminuição dos salários pagos e, obviamente, para o
encolhimento do poder de compra. No início do novo século, mais da metade da
População Economicamente Ativa (PEA) mergulha na informalidade. As taxas de
desemprego dobram e apontam períodos cada vez mais longos para os trabalhadores
conseguirem um novo emprego. Os números são tão assustadores que os governantes
adéquam os critérios utilizados nas estatísticas oficiais a fim de ocultar esta
situação avassaladora.
Vários fatores macroeconômicos levam esta realidade a ganhar
consistência. Entre eles, os mais visíveis deitam raízes nas baixas taxas de
crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), na desregulada abertura comercial e
financeira da economia, no aumento da PEA, na redução da participação da
indústria no PIB, nas privatizações e na queda dos investimentos. Enfim, uma reestruturação
produtiva cujo motor principal não é a ampliação da base tecnológica e sim a
precarização do trabalho.
A contenção do descontentamento gerado pelas mudanças em curso se baseia
num ideário que alardeia a chegada de um mundo onde ninguém seria empregado
(daí o estímulo a cada um montar o próprio negócio) e na ideia pela qual as
medidas de flexibilização e precarização gerariam novos e abundantes empregos.
Nada mais do que dois engodos. De fato, não há quem explique como todos podem
ser patrões num mundo sem empregados. Por outro lado, a redução dos custos do
trabalho é apontada como necessária para recuperar o nível de emprego quando,
na verdade, contrata-se sempre alguém porque há trabalho a ser feito e não,
simplesmente, porque o seu salário está baixo.
Passada a euforia do Plano Real, a redução dos salários, fruto da
crescente precarização, tem efeito contrário à modernização da produção na medida
em que amplia a vida útil de equipamentos obsoletos e faz com que, na maioria
das circunstâncias, o trabalho vivo seja mais flexível e lucrativo. Robôs e equipamentos
eletrônicos destinados às indústrias, por exemplo, são rentáveis apenas quando
de uma utilização média elevada, o que pressupõe um mercado consumidor em
expansão, algo, portanto, na contramão do corte nos salários. Nas próprias
montadoras, aposta-se mais na “mão humana” à exceção dos setores de pintura e
armação de carrocerias onde os robôs são instalados para atender padrões de
acabamento internacionalmente aceitos, o que leva sua introdução no Brasil a
acontecer de forma lenta e seletiva. Por outro lado, sempre devido aos baixos
salários, é mais barato contratar um batalhão de pessoas para cavar o alicerce
de um prédio de quatro andares, com a largura e a profundidade necessárias, do
que uma escavadeira que, além do elevado custo da hora de trabalho, abre uma
vala cujo gasto adicional de materiais não compensa a rapidez com a qual
conclui o serviço.
Paralelamente a isso, a chegada de computadores com programas mais
“amigáveis” elimina qualificações e competências que, no período anterior,
obrigavam as empresas a contratarem profissionais com salários maiores. O saber
do analista de crédito, por exemplo, integra agora um software que pode ser
operado por um simples digitador sem nenhuma responsabilidade na concessão dos
valores solicitados pelos clientes. Inseridos os dados, é a máquina que se
encarrega de tomar as decisões que antes exigiam certo conhecimento e
capacitação no ramo.
Na esteira desses acontecimentos, entre 1998 e 2003, assistimos à
implantação local de políticas que têm profundas consequências para o ensino. É
em 1998 que, por exemplo, no Estado de São Paulo, se institui a progressão
continuada e uma reformulação na organização das escolas estaduais que eleva a
quantidade de alunos por sala, reduz o tempo de aula e, em nome da eficiência,
encolhe o número de escolas. Em seu conjunto, estas medidas dificultam o aprendizado
e pioram o quadro das instituições públicas de ensino num estado considerado a
locomotiva econômica do país. Apesar disso, a relação da escola com as
características do trabalho, próprias daquele momento, não sofre prejuízos, à
medida que a maioria das vagas pede uma leitura capaz de identificar
corretamente o letreiro do ônibus, a capacidade de resolver contas simples e
saberes práticos acessíveis.
Enquanto isso, as empresas passam a exigir o ensino fundamental completo
ou o médio para postos que, até o período anterior, nada pediam em termos de
escolaridade. Apesar de o rol de tarefas específicas se manter inalterado, há
uma mudança qualitativa no efeito que esta exigência produz nas pessoas.
Inúmeros candidatos aos empregos disponíveis se culpam pelo desemprego em
função da falta de estudos. A constatação é de que há vagas, mas falta o canudo
que permite ocupá-las. É assim que, nas ruas das cidades, começam a proliferar
faixas oferecendo cursos que condensam em alguns semestres o conteúdo do ensino
fundamental e médio. Se é verdade que, como diz o senso comum, sempre se
aproveita alguma coisa do estudo feito, por fraco que seja, é mais verdade
ainda que o centro das atenções não é o saber e sim o canudo que serve de
passaporte para a disputa de uma vaga.
Nas chamadas “ilhas de excelência” da produção industrial, a introdução
de um punhado de robôs (450 ao todo, em 1997)[1]
faz com que seus operadores, escassos naquele momento, tenham acesso a salários
e benefícios mais elevados e passem por processos de treinamento custeados
pelas empresas. Na medida em que não há como a educação formal ensinar a
operação de máquinas que funcionam com base em softwares adaptados às especificidades
da produção, esta tarefa só pode ser assumida por quem as introduz nos
processos de trabalho.
Em termos de competências básicas, porém, a seleção destes profissionais
exige o segundo grau completo por esperar que a passagem pelo ensino médio e,
eventualmente, por cursos específicos, garanta quatro habilidades
imprescindíveis na operação de um robô:
1. Leitura
e entendimento de texto em tempos compatíveis com a velocidade pela qual a
operacionalização do equipamento é visualizada na tela do computador;
2. Escrever
sem cometer erros de ortografias, pois os programas não reconhecem comandos
digitados sem a sequência de letras neles inserida;
3. Conhecimento
e manuseio de um teclado, de preferência acompanhado por uma digitação que use
todos os dedos;
4. Noções elementares
de informática, aprimoradas durante o treinamento na empresa, para distinguir
se os problemas detectados são de software ou de hardware.
Estamos falando, portanto, de algo que, em grande parte, a escola
pública já deveria estar conseguindo, mas que, na dificuldade de encontrar
candidatos à altura destas demandas, leva os empresários a contratarem pessoas
vindas de instituições privadas de ensino. Em ambos os casos, a admissão não se
dá automaticamente, mas passa por uma seleção rigorosa, um período variável de
testes e outro de longo aprendizado. Afinal, ninguém entrega uma máquina que
custa milhões a um “moleque” que acaba de sair do ensino médio pelo simples
fato de apresentar as competências solicitadas. O que as empresas de ponta
precisam provar é a confiabilidade política e econômica do sujeito. E isso leva
tempo.
Coincidência ou não, é neste período que nas bancas de jornal das
grandes cidades aparecem coletâneas de romances escritos pelos mestres da
literatura universal, vendidas a baixo preço, com direito a capa dura e brindes
que convidam à compra até por curiosidade ou, na pior das hipóteses, para
enfeitar a estante da sala. Ao contrário do que ocorria em períodos anteriores,
a mídia sustenta este processo com reportagens, entrevistas, lançamentos de
coleções, divulgação de eventos literários abertos ao grande público e uma
série de intervenções que apontam a leitura como porta de acesso a um mercado
de trabalho em mudança.
Nesta fase, as queixas relativas à “falta de mão de obra” se concentram
nas áreas de manutenção dos equipamentos informatizados e nos setores de
tecnologia de ponta, pois, como já dissemos, a inovação traz a necessidade de
qualificações não imediatamente disponíveis, pelo menos não na abundância
desejada para reduzir os ordenados pagos.
O grosso dos assalariados, porém, continua na precariedade, vendo suas
condições de vida e de trabalho se degradarem e com bem poucas perspectivas de
melhora no futuro imediato. O censo do IBGE realizado no ano 2000 reflete em
seus dados a somatória entre o impacto positivo trazido pelo controle da
inflação e a precarização do mercado de trabalho que percorre a década. Pela
renda domiciliar per capita, constatamos a realidade que segue: [2]
Renda domiciliar per capita
|
Porcentagem das famílias
|
Até 1 salário mínimo
|
54,9%
|
Mais de 1 a 2 salários mínimos
|
21,87%
|
Mais de 2 a 3 salários mínimos
|
8,27%
|
Mais de 3 a 5 salários mínimos
|
7%
|
Acima de 5 salários mínimos
|
7,96%
|
Os números indicam que mais da
metade da população brasileira vive em famílias que, de acordo com os critérios
do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, se situam abaixo da linha da
pobreza, parte das quais em condições de vida que marcam o fim do sonho de
encontrar no trabalho a via de acesso à ascensão social.
A partir de 2004, a economia
nacional volta a crescer em ritmo mais intenso. De acordo com o Cadastro Geral
de Emprego e Desemprego (CAGED) do Ministério do Trabalho e Emprego, entre 2001
e 2010 são criadas 13.360.000 novas vagas, o salário mínimo ganha poder de compra
por incorporar, além da inflação, o índice de crescimento do país no ano
anterior e a base da pirâmide social conta também com novas possibilidades de
crédito. Graças aos programas governamentais há mais gente na escola e tendo
acesso à universidade, o que aumenta o número médio de anos de estudo dos
trabalhadores acima dos 25 anos de idade dos 5,6 em 2000 para 7,2 anos em 2011[3].
No final da década, a redução do desemprego ganha impulso também em
função do menor crescimento percentual da PEA em relação ao do aumento da
ocupação o que, teoricamente, deveria generalizar uma elevação de todos os
salários pagos. Mas, apesar dos aspectos quantitativos ampliarem o mercado
consumidor e projetarem uma situação favorável, as transformações em andamento
não revertem o nível de precarização do trabalho alcançado nos anos 90.
Prova disso é que, entre 2000 e 2010, o PIB do país cresce 40,34%, o
número de salários pagos acompanha o crescimento econômico, mas sua
participação no PIB aumenta apenas 9,03%. De acordo com o IBGE, se, no ano
2000, os salários representam 32,1% da riqueza nacional, em 2010, esta
porcentagem chega a 35,2%, o mesmo nível registrado em 1995, primeiro ano após
a implantação do Plano Real.
Isso é possível porque os empresários ampliam a oferta de vagas, mas
diminuem os salários pagos. Esta situação se reflete na renda domiciliar per
capita levantada pelo Censo de 2010: [4]
Renda domiciliar per capita
|
Porcentagem das famílias
|
Até 1 salário mínimo
|
60,57%
|
Mais de 1 a 2 salários mínimos
|
20,33%
|
Mais de 2 a 3 salários mínimos
|
7,01%
|
Mais de 3 a 5 salários mínimos
|
5,68%
|
Acima de 5 salários mínimos
|
6,41%
|
Os dados indicam que temos um
aumento das famílias cuja renda per capita é de até um salário mínimo e uma
queda percentual em todas as outras faixas quando comparadas ao que havia sido
constatado pelo recenseamento anterior.
Esta realidade se deve, principalmente, a quatro fatores simultâneos:
1. O
aumento real do salário mínimo que, entre 2002 e 2011, é de 57%, ao passo que o
do salário médio do trabalho principal das pessoas com carteira assinada no
setor privado não passa de 8% (o que faz cair a diferença entre os dois níveis
de 4,2 salários mínimos em 2002 para 2,96 salários mínimos em 2011);
2. O
progressivo crescimento da terceirização, cuja remuneração média é 27,1% menor
do que a dos funcionários diretamente contratados pelas empresas;
3. Uma
rotatividade média de 48,53% ao ano no período considerado;
4. O fato
de, no mesmo espaço de tempo, o ordenado dos admitidos representar, em média,
88,3% do vencimento dos demitidos.[5]
O processo que descrevemos explica também porque em igualdade de idade,
condições pessoais e demográficas, tipo de atividade econômica, em empresas de
tamanhos semelhantes e em regiões geográficas e condições de trabalho
compatíveis, de 2002 a 2011, assistimos à redução percentual da diferença entre
a renda média recebida pelos empregados de um determinado nível de instrução em
relação aos do grau imediatamente inferior. A tabela que segue revela as
mudanças que ocorrem entre 2002 e 2011: [6]
Grau
de instrução em relação ao nível inferior
|
Diferença
percentual entre a média salarial em 2002
|
Diferença
percentual entre a média salarial em 2011
|
Ensino
fundamental completo sobre ensino fundamental incompleto
|
13%
|
9%
|
Ensino
médio completo sobre ensino fundamental completo
|
47%
|
33%
|
Ensino
superior completo sobre ensino médio completo
|
140%
|
105%
|
Pós-graduação
sobre ensino superior completo
|
214%
|
180%
|
Mas há uma pergunta que não quer
calar. Em 2010, quantas são as vagas que demandam competências próprias dos
níveis de escolaridade mais elevados? Mais uma vez, o último Censo nos fornece
os dados essenciais de acordo com a discriminação que segue: [7]
Grau
de instrução
|
Número
de pessoas
|
Porcentagem
da PEA
|
Sem instrução e fundamental incompleto
|
35.752.700
|
38,24%
|
Fundamental completo e médio incompleto
|
17.119.662
|
18,31%
|
Médio completo e superior incompleto
|
28.870.344
|
30,87%
|
Superior completo
|
11.316.075
|
12,1%
|
Não determinado
|
445.879
|
0,48%
|
Os números mostram que, no
universo de 93.504.659 pessoas da PEA, nada menos do que 87,42% dos empregos
formais e informais são ocupados por indivíduos cujo grau de instrução culmina
no ensino superior incompleto, deixando em 12,1% o número das vagas destinadas
aos níveis superiores. Em outras palavras, quase 90% da base econômica da
sociedade continua não precisando de pessoas cujas competências sejam
adquiridas ao completar cursos universitários.
A surpresa fica por conta dos dados de 2011 e 2012
relativos à criação/supressão de vagas por faixa salarial no que é o saldo
positivo final de postos criados em cada ano. De acordo com o estudo da LCA
Consultores Associados, cuja base de cálculo é dada pelas vagas criadas no ano
em curso e comunicadas ao CAGED no prazo correto, constatamos que: [8]
Faixa Salarial
|
Vagas criadas em 2011
|
Vagas criadas
em 2012
|
Até meio Salário Mínimo
|
45,3
mil
|
38,3
mil
|
De meio a 1 Salário Mínimo
|
524
mil
|
369,7
mil
|
De 1 a 1,5 Salário Mínimo
|
1.224,7
mil
|
888,7
mil
|
De 1,5 a 2 Salários Mínimos
|
117,8
mil
|
38,4
mil
|
De 2 a 3 Salários Mínimos
|
- 139,6
mil
|
-
210,2 mil
|
De 3 a 4 Salários Mínimos
|
- 97,6
mil
|
-
105,8 mil
|
De 4 a 5 Salários Mínimos
|
- 37,2
mil
|
- 34,3
mil
|
De 5 a 7 Salários Mínimos
|
- 38,6
mil
|
- 52,9
mil
|
De 7 a 10 Salários Mínimos
|
- 17,2
mil
|
- 22,6
mil
|
De 10 a 15 Salários Mínimos
|
- 8,2
mil
|
- 18,9
mil
|
De 15 a 20 Salários Mínimos
|
- 7,2
mil
|
- 8,4
mil
|
Mais de 20 Salários Mínimos
|
-7,5
mil
|
- 11,3
mil
|
Total de vagas criadas
|
1,566
mil
|
868,2
mil
|
Contrariando as afirmações da mídia, os números provam de forma
inequívoca a redução das vagas que pagam melhores salários em função das
qualificações exigidas, e o aumento dos postos cuja remuneração não supera os
dois salários mínimos.
Esta mesma realidade pode ser verificada nos relatórios do CAGED. Em 2012, dos 1.301.842 novos
empregos, que incluem as vagas criadas em 2011, mas comunicadas fora do prazo e
incorporadas ao ano seguinte, percebemos que o setor de serviços ocupa a
primeira posição com 666.160 postos, seguido por comércio, com 372.368,
construção civil, com 149.290, indústria, com 86.406, extração mineral, com
10.928, e administração pública com 1.491.[9]
Considerando que, historicamente, o comércio e o setor de serviços são
conhecidos pelos salários reduzidos e a admissão de pessoas com baixa
qualificação, e que algo semelhante ocorre na indústria e na construção civil,
temos um quadro nada animador em termos de incentivos à melhora dos ensinos
fundamental e médio: [10]
Grau
de instrução
|
Salário
Médio de Admissão
|
Aumento
Real 2012/2011
|
Analfabetos
|
R$ 763,36
|
8,74%
|
Até
5º Incompleto
|
R$ 827,89
|
6,68%
|
5º
Completo Fundamental
|
R$ 856,84
|
5,97%
|
Fundamental
Completo
|
R$ 889,77
|
5,86%
|
Médio
Incompleto
|
R$ 806,24
|
5,03%
|
Médio
Completo
|
R$ 930,36
|
4,79%
|
Superior
Incompleto
|
R$ 1196,85
|
0,55%
|
Superior
Completo
|
R$ 2577,66
|
0,31%
|
O fato de a maior parte da demanda de trabalhadores ocorrer nas
funções menos qualificadas é aqui comprovado pelo índice de aumento médio real
dos salários de admissão de acordo com o grau de instrução dos contratados, já
descontada a inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor.
Estes salários recebem porcentagens maiores de aumento real por combinarem a
proximidade de seus vencimentos com o valor do salário mínimo e os efeitos da
própria demanda sobre os níveis de oferta disponíveis. Do mesmo modo, o
reduzido aumento real nos salários de admissão dos que têm o superior
incompleto e completo reflete a redução do número de postos disponíveis e a
maior oferta de trabalhadores com esses graus de escolaridade.
Isolando o aumento médio dos salários que, em 2012, foi de 4,1%,
do saldo de vagas por faixa salarial e do grau de instrução, temos a impressão
de que as coisas estão melhorando para todos e que o país caminha realmente em
direção a uma demanda consistente de pessoas qualificadas. Mas, quando
introduzimos as variáveis apresentadas nas tabelas acima, percebemos que há sim
um aumento das vagas disponíveis, mas nas funções que pressupõem saberes não
superiores aos adquiridos até o ensino médio completo. Trata-se de uma
realidade que marca presença em 2011 e 2012 e que, como veremos, veio para
ficar.
3. Há vagas, mas não
trabalhadores para ocupá-las?
Sempre que a mídia toca nesse assunto, temos a impressão de que se trata
de um problema típico da força de trabalho brasileira. Os dados divulgados na
imprensa mundial, porém, mostram um panorama diferente.
Por exemplo, de acordo com o Informe do Instituto de Economia da
Alemanha, publicado pelo jornal Die Welt em 03 de agosto de 2013, existiriam no
país 119 profissões muito requisitadas e para as quais não há candidatos. Neste
numero estariam incluídos cargos qualificados, como os de especialistas em
tecnologia da informação, profissionais de matemática, cientistas e
engenheiros, e de baixa qualificação como encanadores, pintores, pedreiros, camareiros
e auxiliares de enfermagem.
À medida que o crescimento populacional do país é negativo (e não porque
na Alemanha faltem institutos de ensino à altura das necessidades), as vagas do
primeiro grupo que permanecem em aberto são preenchidas com o trabalho de
imigrantes vindos de países como Espanha, Portugal e Itália. No extremo oposto,
além da diminuição da população economicamente ativa, temos a recusa do alemão
médio de se dedicar a trabalhos manuais pesados e de baixa qualificação, cujos
postos, em geral, são ocupados por pessoas oriundas de países não europeus que,
pressionadas pelas condições de vida na terra natal, estão dispostas a se
submeterem a qualquer sacrifício.[11]
No Brasil, 25% das permissões de trabalho para estrangeiros são
vinculadas à indústria petrolífera num leque de 15 atividades econômicas para
as quais o país importa profissionais. Aparentemente, esse dado contradiz a
premissa pela qual a presença de uma empresa de ponta em território nacional
abre caminhos para a formação local de trabalhadores em cursos universitários e
profissionalizantes que atendam às suas demandas. E não é pra menos. De acordo
com a Coordenação Geral de Imigração (CGI), vinculada ao Ministério do Trabalho
e Emprego, entre 2010 e 2012, teriam entrado no Brasil nada menos do que 49.801
profissionais de países como Grã Bretanha, Estados Unidos, Noruega, Holanda e
França para atuarem no setor de petróleo e gás. O número assusta, mas, como
sempre, deve ser relacionado à realidade do setor.
A descoberta do pré-sal tem introduzido a necessidade de desenvolver
tecnologia para perfurar em camadas de sal a mais de 2.000 metros de
profundidade, a urgência de aprimorar os mecanismos de pesquisas de novos
campos petrolíferos, de reativar os estaleiros locais para a construção e
manutenção de plataformas, sistemas de dutos, navios para a prospecção e o
transporte de petróleo. Não que faltem técnicos e especialistas no Brasil, mas o
fato de estes setores terem sido desativados ao longo dos anos 90 (quando os
governos preferiam importar no lugar de produzir no país) soma-se à entrada das
multinacionais na disputa pelos novos campos petrolíferos e à demanda em função
dos próprios investimentos da Petrobrás. Esses fatores ampliam a defasagem entre
as possibilidades de formar força de trabalho brasileira e os tempos do capital
nacional e internacional que tem pressa em viabilizar os novos poços. Por si
só, o número das permissões concedidas pelo CGI, ano a ano, comprovam quanto
acabamos de afirmar:
Ano
|
Número de permissões para estrangeiros
|
2006
|
2.645
|
2007
|
4.249
|
2008
|
5.877
|
2009
|
8.721
|
2010
|
9.910
|
2011
|
23.172
|
2012
|
16.719
|
Exceções à parte, nossas reflexões seriam incompletas sem um olhar mais
atento sobre o que, na realidade do país, serve de base às afirmações da mídia.
O primeiro aspecto que queremos resgatar é a ausência crônica de
investimentos empresariais na capacitação de pessoas para demandas oriundas da
especificidade de seus empreendimentos. Este vácuo, justificado pela ideia de
que cabe ao empregado custear a formação que proporciona sua admissão ao cargo,
faz com que só uma pequena minoria de empregadores enverede pelo caminho da
qualificação no trabalho. Capacitar pessoas exige um processo lento, caro e de
retorno incerto, na medida em que o funcionário preparado por uma empresa pode
ser “roubado” por um concorrente que paga melhor sem nada ter investido em sua
formação. Por isso, a ampla maioria dos patrões busca sempre contratar alguém
já pronto e, sobretudo, “barato”. O problema é que este contingente começa a
escassear em função da elevação da demanda, do baixo crescimento da população
economicamente ativa e do aumento real do salário mínimo para as profissões com
baixa qualificação.
Alguns exemplos ajudam a visualizar os gargalos e as saídas com os quais
os detentores do poder se deparam na hora de encontrar empregados com as
características desejadas. Um deles salta aos olhos sempre que se veicula a ideia
de que há vagas difíceis de serem preenchidas. Uma delas pode muito bem ser a
de pintor de tanques e plataformas da Petrobrás. À primeira vista, parece que
encontrar alguém com o curso de pintor industrial não deve ser tão difícil
assim e, de fato, não é. Esta, porém, é apenas a primeira e a mais simples das
exigências que devem constar do currículo do candidato.
Além de saber exercer a profissão, o pintor deve ter experiência e
capacitação comprovadas para lidar com as tintas de alta resistência utilizadas
pela empresa, o que é essencial para garantir o padrão de acabamento exigido.
Por si só, esta condição consegue eliminar a maioria dos possíveis ocupantes da
vaga já que os cursos teóricos no chamado “Padrão Petrobrás” existem, mas,
obviamente, não oferecem a experiência solicitada. Último, mas não menos
importante, pede-se que o interessado comprove que possui noções de alpinismo,
pois boa parte do serviço será executada nas alturas com o funcionário
pendurado em cordas, o que exige uma série de outros requisitos, como o não
sofrer de vertigens e tonturas, por exemplo. Tudo isso para um contrato por
tempo determinado a ser assinado com uma empreiteira á medida que, uma vez
realizada a pintura dos equipamentos, durante anos, não haverá mais necessidade
daquele trabalhador no local indicado pela Petrobrás. Quando verificamos as
condições exigidas, a vaga estava aberta há 37 dias, sem encontrar candidato.[12]
Esta situação instigante nos leva a
perguntar que tipo de competências os ensinos fundamental, médio e superior
poderiam acrescentar em seus currículos para ir ao encontro de uma demanda tão
específica. Por muito que nos esforcemos, dificilmente, podemos pensar em algo
que se aproxime dos conteúdos do curso profissionalizante de pintor industrial
nas aulas de química ou de alpinismo nas de educação física... Certamente, o
candidato deve aprimorar sua capacidade de lidar com cálculos de porcentagens
(o preparo das tintas não pode ser feito na base do “olhómetro”, mas exige
elevado grau de precisão), de leitura e entendimento de texto para a correta
interpretação dos rótulos dos produtos, além de ter um físico sem os efeitos da
vida sedentária, mas nada mais. O jeito, portanto, é esperar alguém aparecer,
depois que a equipe em que trabalha tenha acabado de pintar tanques ou
plataformas em outra localidade onde a Petrobrás tem uma base de operações.
Pode parecer brincadeira, mas, de fato, é isso que vem acontecendo.
O segundo exemplo diz respeito à
preparação dos hotéis para a Copa do Mundo de futebol de 2014 e as Olimpíadas
de 2016. A realidade do setor descrita no recém-divulgado estudo do DIEESE
confirma as tendências gerais do mercado de trabalho brasileiro. Concretamente,
estamos falando de uma atividade na qual 59,8% dos empregados estão na faixa de
renda até 1,5 salário mínimo sendo que outros 21,4% recebem de 1,5 a 2 salários
mínimos, 11,8% de 2 a 3 salários mínimos e apenas 6,5% do efetivo empregado
ganha acima disso.
Como não poderia deixar de ser, o nível de escolaridade reflete o baixo
grau de qualificação das vagas do setor ao apontar que 16,9% dos empregados não
completaram o ensino fundamental, 20,6% têm o fundamental completo, 12% o médio
incompleto, 43,2% o médio completo e apenas 7,2% estão cursando ou já
terminaram o ensino superior.[13]
Quando comparamos as características das vagas oferecidas com as competências
próprias do da escolaridade, percebemos não haver defasagens na medida em que
as eventuais especificidades da função só podem ser atendidas por cursos
profissionalizantes ou por sessões de treinamento no padrão de qualidade
exigido por cada hotel de acordo com a clientela atendida. Contudo, sabendo que
também os empregados dos cargos que não exigem qualificação, em algum momento,
podem entrar em contato com hóspedes estrangeiros, como irão se comunicar com
eles se, na ampla maioria dos casos, o conhecimento do inglês, por exemplo, é inexistente?
Longe de uma capacitação à altura do desafio de fazer dos eventos
esportivos um cartão postal para o futuro, os proprietários de hotéis exigem
certa fluência de recepcionistas, telefonistas e do pessoal que deve resolver
os problemas mais delicados do dia-a-dia. Para os demais, estão sendo
preparadas aulas estilo “fast food” em parceria com escolas de idiomas. A
“qualificação em línguas estrangeiras” vai ocorrer em módulos de conversação de
45 horas/aula onde cada nível de atendimento será instruído no que basta para
encaminhar o hóspede a quem pode entender seus pedidos. É claro que, por
exemplo, serão dispensados deste aprendizado os empregados da lavanderia, ao
passo que roupeiras e arrumadeiras não passarão do primeiro módulo cujas frases
se juntarão à mímica na hora de estabelecer curtos diálogos com quem vier a solicitar
sua atenção.[14]
Longe de uma preparação que contribua para a qualificação e a efetiva
capacitação dos funcionários, estamos falando de um quebra-galho, realizado às
pressas para atender um pico de demanda em função do qual só um punhado de
empregados poderá obter benefícios para sua futura inserção no setor.
O terceiro caso nos é fornecido pela
construção civil que vem passando por um período de expansão de suas atividades
e cujos empresários se queixam das dificuldades em encontrar pedreiros e ajudantes
capacitados. Acostumadas a encontrarem pessoas que se contentavam com qualquer
coisa, as empreiteiras não se conformam com a escassez de trabalhadores
dispostos a se deixarem esfolar em serviços esgotantes e mal-remunerados.
Pedreiro bom existe, mas não é barato. O problema para os donos do poder
é de que um profissional de mão cheia trabalha facilmente por conta própria,
consegue, em média, uma renda líquida correspondente ao dobro do salário das
empreiteiras e contrata ajudantes à altura de suas necessidades que, melhor
remunerados, não têm porque procurar emprego em canteiros de obra. Se a esta
realidade somamos a falta de uma política de treinamento e qualificação a ser
levada adiante nas empresas, a redução do número de migrantes que se dirigem
aos grandes centros e o fato de as pessoas com maior escolaridade procurarem
empregos que pagam salários semelhantes para trabalhos menos pesados,
percebemos que a falta de pessoal encontra aqui explicações plausíveis para a
quase totalidade dos casos. É assim que, nos canteiros, é cada vez mais comum
encontrar pedreiros recém-formados em cursos rápidos de profissionalização que
levantam paredes sob o olhar atento dos mestres de obra. De imediato, o fato de
a remuneração não ultrapassar os pisos negociados com os sindicatos não é visto
como um grande problema à medida que pedreiros e ajudantes buscam ganhar
experiência rumo a um trabalho por conta própria que proporcione ganhos maiores
no futuro.
Além disso, já vínhamos sinalizando o fato de que, na década de 90, a
precarização do emprego e a piora nas condições de vida das populações na base
da pirâmide social levavam à perda da perspectiva pela qual o trabalho seria o
caminho natural para subir na vida. Sabendo disso, alguns intelectuais estimam
em 20 milhões de pessoas o contingente dos que não servem nem para serem
explorados na medida em que nunca adquiriram as disposições elementares da
disciplina do trabalho ou não vêem nele uma saída para a própria condição
social.[15]
É a este grupo que se dirigem os esforços de diferentes níveis de
governo em proporcionar cursos profissionalizantes de curta duração para
atividades manuais simples, requisitadas pelo mercado. Até abril do ano em
curso, portanto em um ano e meio de existência, o PRONATEC (Programa Nacional
de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego do Ministério da Educação) já formou 2,8
milhões de jovens e trabalhadores e atingiu a marca de 380.000 matrículas entre
pessoas cadastradas no Brasil sem Miséria. Trata-se, sem dúvida, de uma
tentativa válida de transformar o contingente da População Economicamente Ativa
desocupada e inapta em exército industrial de reserva, capaz de assumir os
postos nas funções de baixa qualificação. Mas este esforço que procura reparar
os estragos produzidos pelos empresários nas décadas anteriores se depara com
problemas que não serão resolvidos pelos cursos oferecidos.
A título de exemplo, vamos considerar um programa concreto baseado na
parceria entre poder público e iniciativa privada que, a princípio, soma os
recursos para a qualificação com a demanda real do mercado de trabalho. No dia
25 de março de 2013, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e a
Prefeitura do município de São Paulo, assinaram um convênio para, aproveitando os
recursos do PRONATEC, oferecer cursos de almoxarifes, confeccionadores de
bolsas e acessórios, mecânicos de motores a diesel, mecânicos de bicicleta,
padeiros, pedreiros de alvenaria, eletricistas para instalações em prédios,
encanadores, pintores, vidraceiros e aplicadores de revestimento cerâmico,
entre outras profissões.
O objetivo, até o final de 2013, é o de formar cerca de 2000 pessoas em
situação de rua para possibilitar sua inserção no mercado de trabalho. Para
isso, está sendo organizada uma rede de apoio que vai fornecer transporte,
alimentação e uma ajuda em dinheiro vinculada à frequência nas aulas. A escolha
dos cursos não parte das características e das dificuldades das pessoas em
situação de rua, cujo sofrimento costuma levar à ausência de qualquer
disciplina de horário e de trabalho, além de níveis diferenciados de degradação
humana, mas tão somente da demanda de vagas.
Nunca é demais lembrar que sem um processo de adaptação do próprio corpo
aos aspectos básicos do trabalho, o exercício de qualquer profissão se torna
praticamente impossível. Por simples e desqualificada que seja a vaga
oferecida, seu preenchimento não é inviabilizado pela índole ou o caráter dos
que vivem na rua e da rua, mas, fundamentalmente, pelo fato de que a condição
de moradores de rua impede, objetivamente, qualquer tipo de disciplina,
planejamento e projeção de futuro. As pessoas nesta situação costumam se focar
em ações que proporcionam nada mais do que a sobrevivência física imediata.
Para termos uma idéia das implicações que isso representa, basta pensar
no fato de que muitos moradores de rua dormem de dia e permanecem acordados a
maior parte da noite para evitar a ação de quem vê em sua eliminação física o
fim de um incômodo para os comerciantes e as “pessoas de bem”. Manter-se vivo
nas ruas de São Paulo demanda a capacidade de assumir a incerteza como
companheira de todas as horas, de procurar comida e abrigo contrariando todas
as regras, enfim, de aprender a sobreviver numa realidade onde o acaso, a sorte
ou o azar de cada dia são características que impedem qualquer previsão e tornam
sem sentido planejar ações e horários.
A humilhação e a sensação de não ter direito a ter direitos, que
constitui seu andar pela cidade, evidenciam que, mais do que uma preocupação com
a lógica e as necessidades do mercado, o seu resgate deve trilhar caminhos mais
intricados. Oferecer cursos profissionalizantes pode parecer uma boa saída para
patrões supostamente filantrópicos e para os programas de inclusão social do
poder público. O problema é que partir do afã do mercado em ter trabalhadores
baratos implica em passar por cima das características e realidades dos
sujeitos aos quais se destinam os cursos oferecidos, o que abre caminhos para o
fracasso do programa.
No que diz respeito à formação profissionalizante proporcionada pelo
SENAI, não vemos nenhuma contradição com nossas afirmações anteriores. O atraso
na adaptação curricular dos ensinos fundamental e médio às demandas da produção
encontra aqui um correspondente à altura no mundo da preparação específica para
o trabalho. É praxe das Federações das Indústrias abrirem unidades de
aprendizagem nos estados de acordo com suas necessidades e reestruturarem as
existentes sempre e quando há certo descompasso entre os investimentos locais e
os conteúdos que servem de base à formação de novos profissionais. Esta
defasagem, aliada às características próprias do mercado de trabalho em cada
região, faz com que os candidatos a uma vaga dificilmente saiam com um emprego
ao alcance das mãos em empresas de peso.
O fato de terem cursado, e pago de próprio bolso, o que visa lhes
proporcionar conhecimentos teóricos suficientes para começar, não impede que as
exigências da produção os submetam a condições de experiência comprovada. Ou
seja, o casamento da vaga com o candidato precisa de confiabilidade, de pré-condições,
de situações capazes de comprovar que a formação assimilada, em termos
técnicos, econômicos e políticos, é condizente com as necessidades do cargo.
Algo, portanto, que não é imediato e pode deixar em aberto postos que demandam
certa capacidade de aprender a aprender ou saberes práticos não diretamente
acessíveis em cursos profissionalizantes.
Estamos convencidos de que os
exemplos acima são suficientes para não comprarmos gato por lebre e para
percebermos as razões e os objetivos dos donos do poder que se disfarçam sob o
que é repetido pelo senso comum e acriticamente incorporado como verdade.
4.
Famílias e alunos no olho do furacão.
Sempre que a busca de um culpado pela
má qualidade do ensino coloca as famílias no banco dos réus, o indicador de
quem acusa não aponta uma instituição social genérica, e sim núcleos que vivem
em condições extremamente precárias. Marginalizadas e com histórias de vida de
dar arrepios, essas pessoas não têm a quem recorrer para sanar situações
degradantes que tendem a se perpetuar.
Não é de hoje que periferias e
curtiços das grandes cidades abrigam problemas sociais e humanos que revelam graus
diferenciados de abandono, perda de valores e de identidade cultural. Por
identidade, entendemos aqui um conjunto de ideias e vivências que, enquanto
patrimônio comum, orientam e disciplinam seus portadores.
Se os migrantes vindos dos ambientes
rurais nos anos 70 tinham uma identidade própria dos lugares de origem e um
anseio que dava sentido aos desafios das grandes cidades, seus descendentes se
distanciam a passos largos desta realidade. A vida nas metrópoles vai
espoliando as pessoas de seus referenciais e destruindo as chances de construir
uma identidade coletiva. A rotina nos grandes centros fortalece o anonimato, a
dispersão, o isolamento, a sensação de estar sempre na corda bamba e deixa um
vazio perante o qual as pessoas não sabem o que fazer. Na maioria dos casos, as
incertezas do dia-a-dia são suficientes para relegar ao âmbito da saudade este
elemento de disciplina e organização trazido do passado. Apesar da complexidade
desses fatores e de suas diferentes manifestações históricas, há aspectos
comuns que permitem evidenciar as mudanças que marcam as famílias operárias das
periferias nas duas últimas décadas.
O fluxo de migrantes que, nos anos
do Milagre Econômico (1970-1975), lota os cortiços e as favelas é basicamente
composto de pessoas que saem da miséria do nordeste em busca de um destino melhor
a ser construído no sul e sudeste do país. A chegada das multinacionais e a
multiplicação das vagas pelas obras públicas atraem centenas de milhares de
seres humanos que deixam suas regiões de origem em busca de uma esperança de
futuro vinculada ao trabalho.
Para quem vivia em condições
extremamente precárias, o cotidiano nas periferias não oferece diferenças
significativas em termos de sofrimentos, quase sempre aliviados pela confiança
cega num amanhã a ser construído sem condições materiais, mas com muita fé.
Apesar dos pesares, esta realidade que transforma sonhos em pesadelos é vista
como momento de passagem rumo a um emprego que permitirá juntar um pé-de-meia,
reunir a família numa casa construída a duras penas, mas que possa ser chamada
de “minha”.
Alcoolismo, brigas, separações de casais, roubos, assaltos e cenas de
violência são parte de uma periferia em constante processo de expansão e onde
faltam escolas, postos de saúde, linhas de ônibus, asfalto e outros serviços.
Após 1977, a ditadura cede algumas migalhas aos movimentos reivindicatórios que
nascem e se desenvolvem a partir de várias realidades, mas todos com um único
objetivo: fazer com que um Estado ausente preencha parte das necessidades
imediatas dos setores empobrecidos da população e não se limite a controlá-los
com o peso da repressão.
Temos, portanto, uma família com todos os tipos de problemas, mas que
continua vendo no trabalho o caminho natural para dar a volta por cima. Nos
anos 80, esta perspectiva começa a ceder diante da inflação crescente, que
corrói o salário e as poucas economias, acompanhada por uma queda sistemática
da quantidade e da qualidade do emprego. Esses fatores deterioram as esperanças
de futuro de quantos nasceram nas metrópoles, não vivenciaram a identidade
cultural dos pais e vêem os sonhos do passado virarem pesadelo numa família que
mal consegue a sobrevivência física.
O processo de democratização do país coloca em movimento vários atores
sociais e, sob a pressão destes, as elites canalizam o descontentamento popular
para o âmbito institucional. Mas o fim da ditadura não marca o fim da
marginalização econômica que tem suas expressões mais visíveis no aumento dos
moradores de rua, do número de favelas, do contingente de desempregados e das novas
manifestações do crime. A desestruturação das famílias torna-se proporcional à
exploração econômica que nega seus anseios de futuro e coloca em dúvida a
possibilidade de os filhos conhecerem dias melhores.
Como vimos nas páginas anteriores, a década de 90 não muda esta perspectiva
sombria. Apesar da redução dos fluxos migratórios ou até mesmo de sua parcial
inversão, o desemprego de longa duração se torna corriqueiro e a informalidade
começa a ser lida com a naturalidade de quem vê nela o único jeito de ganhar a vida.
Se, nos anos anteriores, ser camelô era sinônimo de fazer um “trabalho não
digno de gente”, no período seguinte ter uma barraca para vender qualquer coisa
ganha status de pequeno empreendedor.
Com os processos eleitorais ao centro das atenções e a
institucionalização dos fóruns de discussão, os movimentos reivindicatórios
definham e suas lideranças são incorporadas a institutos, conselhos, gabinetes,
entidades ou projetos que desenvolvem políticas de “enxugar gelo”. Suas ações não
atuam sobre as causas dos problemas sociais, mas limitam-se a administrar a
pobreza com intervenções prioritariamente assistenciais e sempre aquém do
necessário.
Neste ambiente em que valores, posturas e ações dos períodos anteriores
começam a se esgarçar e a desaparecer das periferias, há um crescente esforço
da mídia no sentido de estimular o desejo de possuir bens de consumo como
passaporte para a visibilidade social. O marketing não vende apenas produtos,
vende sonhos ao alcance da mão. A compra como caminho para a felicidade é
estimulada por famosos do espetáculo ou do esporte. Suas mensagens faladas,
visuais ou subliminares mexem com o inconsciente coletivo, dão asas a desejos
inconfessáveis e fortalecem a impressão de que é sempre possível saborear a
sensação de se destacar sobre a massa.
“Ter”, e não “ser”, passa a ser visto como caminho para deixar o
anonimato, adquirir uma dignidade que não depende de valores éticos e pode ser
comprada em prestações mensais. Trata-se de uma distinção que não vem de
práticas diárias ou de posturas que fazem a diferença em termos de mudança
social ou convivência com os demais, e sim de algo que pode ser adquirido,
roubado, ou copiado, mas cuja posse promete projetar o sujeito um degrau acima
de seus pares.
Frequentemente impotente diante da realidade em que se encontra, o
indivíduo acredita na possibilidade de transpor as barreiras da desigualdade
graças a um consumo individualista e solitário. Comprar, ou deixar de comprar,
não é algo indiferente nem depende de uma necessidade material a ser atendida. Trata-se
de um gesto que permite transitar de um “antes” a um “depois” da aquisição como
passagem de status e trampolim para a visibilidade. Aparentemente, algo que é sempre
possível, fácil e rápido, não fossem os empecilhos da condição econômica.
A dinâmica que a propaganda coloca em movimento leva a uma mudança de
comportamento dos pais que passam a se perceber mais como provedores de
conforto material e emocional do que como educadores cujas ações, limites e
valores procuram transmitir os critérios de suas escolhas e decisões. O
crescimento do potencial de consumo de crianças e adolescentes baseia-se nesta
mudança de papel que se fortalece na medida em que prover alguma forma de
bem-estar torna-se sinônimo de presença apesar das ausências causadas pelo trabalho
e a rotina diária. Some a isso a percepção de que a garotada passa horas diante
da TV e entenderá porque as agências de marketing se especializam em acirrar o
desejo de crianças e adolescentes.
Numa realidade econômica que torna
proibitivo o consumo além da sobrevivência, a mídia acaba despertando uma
frustração que marca adolescentes e jovens das periferias e proporcionando ao
crime o adubo necessário à sua expansão. Trabalhar para ganhar visibilidade social
é algo impossível nas condições oferecidas pelo emprego honesto, esgotante e
mal remunerado dos pais. Para quem nasce nos anos 90, cresce nas periferias e
assiste às crises que atravessam a família, o projeto de ascensão social através
de um trabalho digno e estável é algo que definha com o passar do tempo e começa
a sair de sua perspectiva de futuro.
Sem um referencial de valores e
vivências, próprio dos migrantes das origens, perdidos numa realidade sem
sentido e influenciados por pressões de todos os tipos, os jovens da periferia
se vêem numa sinuca de bico: não há trabalho para todos; quando há é pesado,
desqualificado e mal-remunerado; pode-se tentar sair do atoleiro com um lance
de sorte, ser jogador de futebol, modelo, etc., mas isso é para bem poucos;
então, só restam as alternativas que se distanciam dos objetivos familiares do
passado. Na ausência de perspectivas reais de conseguir os bens almejados com
um emprego honesto, os olhares se voltam às possibilidades de dinheiro fácil oferecidas
pelo crime.
Paralelamente a isso, crescem as intervenções
públicas de especialistas pelos quais as crianças devem ser deixadas livres de
manifestarem sua individualidade sem que os pais corrijam atitudes ou estabeleçam
limites para permitir que o verdadeiro “EU”, supostamente presente em cada ser
humano, possa emergir livremente. Filhos e filhas, portanto, não são mais pessoas
em formação, cujas decisões e ações devem ser acompanhadas, orientadas e
limitadas, o que é típico de qualquer processo educativo, mas criaturas cujas
manifestações da própria índole não podem ser submetidas a restrições, sob pena
de obstaculizar o que se acredita serem as autênticas manifestações do sujeito.
Tudo em nome de uma individualidade que só conhece o próprio umbigo, sempre pronta
a competir com tudo e com todos, de uma autoestima que exclui o “outro” do âmbito
de suas preocupações e o reconhece apenas quando precisa de sua presença para
satisfazer os próprios objetivos e interesses.
Quando esta postura se soma a uma
realidade econômica que enterra os projetos iniciais de futuro, o resultado
costuma ser desastroso. Satisfazer os desejos dos filhos torna-se caminho para
que a esperança de estabelecer um diálogo com eles e de obter sua dedicação aos
estudos ganhe alguma chance de se tornar real. Ao mesmo tempo, a luta pelo emprego
se individualiza e se acirra, demanda sacrifícios crescentes em nome de um
amanhã que pode não vir e costuma retribuir bem abaixo do desejo de consumo.
As promessas de invisibilidade e anonimato crescem à medida que descemos
em direção à base da pirâmide social, assustam jovens e adolescentes e provocam
sua rejeição diante de algo que se apresenta como uma versão piorada do que
viram acontecer com os pais. A fronteira que separa uma vida de trabalho duro e
honesto, mas em que se passa fome, de uma na qual nada falta graças ao crime,
se torna porosa. Atravessá-la é fácil e extremamente tentador.
Dos pequenos furtos ao tráfico, do roubo de carros aos assaltos e
seqüestros relâmpago, tudo proporciona riscos e histórias com doses de
adrenalina que se aproximam dos filmes de ação, além de carros, motos,
dinheiro, mulheres, armas, visibilidade e respeito, ainda que no círculo
restrito do mundo periférico onde o sujeito atua. Entrar pela porta que dá
acesso a este universo significa conquistar, de maneira fácil e imediata, o que
o trabalho raramente traria depois de anos de incertezas e sacrifícios e,
sobretudo, a possibilidade de decretar o fim dos desejos não atendidos.
Aos poucos, o crime disputa com as famílias o sentido a ser dado à
própria vida: trabalhar... pra que? Para se esfolar como os pais? Para nunca
ter nada? Para ser considerado otário? Quais as vantagens de uma vida honesta?
Muito trabalho, pouco salário rumo a uma velhice repleta de incertezas? Se for
assim, então é melhor arriscar, aproveitar o que vier, curtir o que der, ainda
que o preço seja morrer cedo. Na base da pirâmide, viver muito não faz sentido
quando significa apenas prolongar os sofrimentos sem chances concretas de
melhora.
Sob o peso desta realidade, as famílias com um padrão estável de
organização, centradas em valores tradicionais, que, bem ou mal, marcavam
presença nos anos 70-80 diminuem a olhos vistos. Em seu lugar, ganha espaço a
crescente coexistência de projetos que se opõem frontalmente. O filho na droga
ou no crime torna-se um forte elemento de tensão no mesmo lar onde outros
membros da família buscam a sobrevivência através de um trabalho honesto.
Ter famílias destruídas ou com algum de seus integrantes com passagem
pela polícia, pelo sistema carcerário ou por instituições destinadas a
adolescentes infratores deixa de ser uma exceção para virar algo assustadoramente
comum. A pergunta que martela a cabeça de jovens e adolescentes continua a
mesma: passar necessidade, sofrendo calado numa situação de invisibilidade social,
mas tentando ser honesto, ou aceitar uma vida curta, sem fome, com algumas
regalias e com o gostinho da adrenalina e do poder graças ao crime?
5. Da “viração” dos pais à
“vida loka” dos filhos.
Antes que se registrasse a situação
que descrevemos acima, ensinar nas escolas da periferia já não era fácil. Das
carências próprias de seus moradores às estruturas deficientes, distantes do
centro, imersas num clima de violência e medo, tudo sempre conspirou contra o
sucesso do mais bem intencionado esforço docente.
Hoje, este desafio ganha as cores de uma batalha perdida quando professores
e professoras dão como pressuposto a existência de atitudes e pré-disposições
que costumam ser típicas de classes sociais com melhores condições de vida. O resultado
não pode ser outro: o conteúdo e a dinâmica em sala de aula tornam-se estranhos,
aparentemente inúteis e sem sentido por se distanciarem da rotina em que se
movimentam pais e alunos. Assim, a ponte que o conhecimento pretende construir
entre o presente de amarguras e um futuro de possíveis realizações implode por
ter uma estrutura incapaz de dialogar com o ambiente em que se inserem as
instituições de ensino.
Para que haja pontos de contato entre os dois mundos, o primeiro passo
dos educadores não é o de se dispor a ouvir e a enxergar a vida em volta da
escola com o olhar dos moradores. Trata-se de ver como eles falam do bairro, da
cidade, do trabalho, de suas perspectivas de futuro e das agruras do presente
para perceber como vivem e interpretam a realidade circunstante. Algo bem
diferente, portanto, do que os docentes costumam conhecer a partir de fora ou
pelas intervenções enviesadas da mídia que retratam as periferias como lugares
violentos, assustadores, sujos e sem lei.
Para isso, faz-se necessária uma aproximação sem preconceitos, sem
julgamento prévio, sem medo de sujar os pés de barro para tocar a realidade das
famílias e construir um canal de comunicação que funcione como via de mão
dupla. Para compreender o sofrimento humano é preciso ter empatia e disponibilidade
para o outro, ouvidos atentos e uma coerência de palavras e gestos capaz de
ganhar a confiança das pessoas. Sem um mínimo de sintonia com a realidade, o
processo educativo corre o risco de “estar por fora”, de não fazer sentido, de
não penetrar na vida em relação à qual pretende ser instrumento de
transformação. Nesta ótica, o fracasso escolar não passa da ponta de um
iceberg, de um pedido de socorro vindo de quem precisa aprender a se expressar
e a falar de si, de um sinal de que os clichês não dão conta da realidade e
mostram que seu distanciamento em relação a ela é proporcional à insistência
com a qual são usados como explicações plausíveis e convincentes.
As reflexões que seguem não passam de uma janela pela qual é possível enxergar
realidades que não costumam integrar o mundo e as preocupações do docente e de
um convite a se deixar questionar por elas. Afinal, como e quanto realmente
conhecemos do ambiente em que vivem os alunos? Em que medida a pedagogia e as
estratégias adotadas em sala de aula representam uma mão estendida para
caminharmos juntos rumo às mudanças que se fazem necessárias?
Para tornar concreta nossa reflexão, optamos por explicitar o
significado de palavras que, no vocabulário próprio das periferias de São
Paulo, resumem o contexto em que se encontram os setores empobrecidos. Sabemos
que estas colocações não podem ser generalizadas, mas, apesar de seus limites,
estamos convencidos de que elas cumprem o papel de provocar, questionar e
dialogar com as práticas e as afirmações mais corriqueiras que ouvimos dentro e
fora da sala de aula.
Não é de hoje que, para sobreviver, o povo simples aprende a “se virar”,
a “dançar conforme a música”, a “dar um jeito”, a “fazer bicos”. Do desemprego
de longa duração à informalidade, passando pela precarização do trabalho e dos
vínculos de emprego, há uma árdua via sacra cujas estações marcam o momento em
que é necessário “engolir mais um sapo”, sorrir pra não chorar, esperar como
remédio para não enlouquecer. No momento, o resultado desta somatória de
sensações e anseios contraditórios pode ser resumido na palavra “viração”.
Quase sempre pronunciada com o gosto amargo de quem se vê sem saídas, a
viração expressa uma realidade na qual é necessário saber fazer um pouco de
tudo, aproveitar oportunidades que surgem e desaparecem com a mesma velocidade,
aguentar e se dispor a sacrifícios maiores. Trata-se, por exemplo, de aprender
a lidar com o assassinato de um filho, com o cônjuge que perde o emprego ou
resolve ir embora, com a falta de moradia, com os perigos da rua, com as
tentações do tráfico e as “leis” que impõe, enfim, com um ambiente de
insegurança permanente, prenhe de tensões explosivas.
Este vórtice destruidor convive com a esperança pela qual “se Deus
quiser, um dia, vai mudar”, reafirmada ora como forma de se resignar, ora como
saída de emergência em direção ao futuro no qual se cultiva o desejo de não ser
tragado pelos acontecimentos. Na “viração” vale tudo para não enlouquecer, para
levantar e começar de novo, tanto pela consciência de que é necessário
continuar ou como resultado daquela cachaça que, apesar dos estragos, ajuda a esquecer
de uma realidade aterradora. Uma vida, portanto, sem sossego, na qual a maré
pode virar a qualquer hora, a brisa se transformar em furacão, e o que parecia
firme e forte desmanchar em segundos.
Para tornar esta imagem ainda mais concreta, pense agora no cotidiano de
um catador de materiais recicláveis que puxa sua carroça pra cima e pra baixo.
Não é necessário ser sociólogos para ver como o que acabamos de dizer pode se
concretizar em sua rotina diária. Mas, para ajudar nesta empreitada, vão aqui
algumas perguntas: humanamente falando, você já se perguntou o que é viver do
lixo? Quanto pesa o carrinho que o catador arrasta com dificuldade pelas movimentadas
ruas da cidade? Você consegue imaginar os xingamentos dos motoristas apressados?
As humilhações das “pessoas de bem” que consideram um absurdo ele pedir água,
dinheiro ou comida nos dias em que chove, só há material de baixo valor ou um
calor insuportável detona suas energias? Ou daqueles que não escondem a
repugnância diante de alguém cujo cheiro mistura os aromas do lixo aos do próprio
suor? E o que dizer dos que soltam um punhado de desaforos pelo fato de ele
ocupar a calçada para arrumar o carrinho? E tem mais. Qual é a sua história?
Por que se viu forçado a ocupar o lugar do burro ou do cavalo a fim de carregar
o peso da própria sobrevivência? Onde ele mora? Debaixo do próprio carrinho com
a esposa e os filhos, como acontece no Largo São Francisco, no centro de São
Paulo? Em barracos onde a menor privacidade é um privilégio impensável? Como
ele se aquece nas noites frias e de chuva? Ele tem estômago de urubu para comer
o que tira do lixo? Como se vira a família dele quando alguém adoece? Seus filhos
estudam? Têm um lugar apropriado para fazer as lições de casa ou um canto onde
guardam materiais e livros a serem pesquisados? Lápis, caneta, giz de cera,
folhas de sulfite e cadernos estão à sua disposição em nome de um futuro
melhor? Ou, a exemplo dos pais, os filhos estão destinados a serem catadores
que começam cedo o duro aprendizado da luta pela sobrevivência? A relação entre
o casal é o que poderíamos chamar de estável ou própria de uma família
estruturada?
A lista das perguntas é bem mais longa, mas a que formulamos é
suficiente para entendermos o que significa a viração para este setor da
sociedade e passar a outros questionamentos. Se estivesse dando aula para
filhos e filhas de catadores, você lembraria de levar em consideração a
realidade em que vivem na hora de preparar os recursos pedagógicos? Optaria por
ensinar o que é uma oxítona, paroxítona e proparoxítona para ser fiel ao
currículo ou quebraria as regras diante de uma realidade que torna ridículo o
ensino mecânico de “pontos” da gramática portuguesa? A escolha do material, das
atividades, das histórias e dos demais etceteras a serem usados em sala de aula
refletiria a preocupação de dialogar com esta realidade? Procuraria
simplesmente reafirmá-la? Compreendê-la? Buscaria estratégias para evidenciar
os nexos causais que ajudam seus alunos a dar voz, cor e forma à “viração” que
marca a vida dos pais e hipoteca seu futuro de filhos? Aliás, quais são mesmo
os saberes de que são portadores os filhos dos catadores? Você iria se queixar
com os pais de que são crianças agitadas? Que seu rendimento escolar é baixo?
Ou que os pais não acompanham o desempenho dos filhos na escola? Você consegue
ao menos imaginar o quanto isso é difícil, pra não dizer praticamente
impossível?
Mais uma vez, poderíamos formular dezena de outras questões, mas bastam
essas poucas para evidenciar o abismo que pode se estabelecer entre famílias e
docentes. Sem uma sintonia entre os dois e sem uma compreensão dos interesses
de classe que dão origem aos catadores como elo que leva a produção da riqueza
a poupar gastos graças à reciclagem é materialmente impossível realizar um
trabalho educativo consistente. Articular a vida das pessoas com o modelo
econômico presente no país e com os caminhos que podem ser trilhados pela
escola rumo à sua libertação das relações de poder existentes é um passo
essencial para planejar as aulas e construir uma pedagogia que faça sentido.
Sem isso, na melhor das hipóteses, corremos o risco de ter apenas o resgate de
histórias pessoais que, de acordo com as tendências dominantes, superestimam a
superação individual (que não incomoda ninguém) em prejuízo da percepção das
injustiças sociais que as produzem, ou se limitam a gerar sentimentos de
comiseração. Trabalhos assim se multiplicam e proliferam em muitos lugares.
Servem de incentivo a não se queixar da própria sorte, segundo a máxima pela
qual há sempre alguém em situação pior, mas raramente são capazes de introduzir
elementos de reflexão que ajudam a fazer com que o conhecimento adquirido
possibilite mudanças na vida das pessoas.
Sem uma leitura adequada dos
acontecimentos, das rotinas, das relações de poder, do que é fruto da incerteza
expresso pela “viração” deste grupo humano, professores e professoras tendem a
reproduzir o que há de mais caro às elites para justificar os problemas sociais
produzidos pela ordem de exploração: responsabilizar os catadores, ou seja, as
vítimas, por sua miserabilidade e por terem filhos que, na escola, se revelam
“péssimos” e “terríveis”.[16]
Ainda que o dia-a-dia dos catadores
não possa ser generalizado, o seu resgate aponta para algo aparentemente claro,
mas sempre esquecido: não é possível dar a mesma aula em qualquer escola para
públicos que vêm de situações diferentes. Ensinar exige a elasticidade de
adotar um processo didático-pedagógico adequado à situação dos alunos e não dar
por pressuposto que estes sejam portadores da disciplina e do comportamento
desejados pelo docente.
As coisas tendem a se complicar na
passagem entre os dois últimos anos do ensino fundamental e o médio. Se você
assimilou o que dissemos no capítulo anterior, não terá dificuldade em imaginar
como as mudanças sociais se refletem na visão dos alunos. Entre as expressões
que descrevem o turbilhão de ações, emoções e sentimentos que pressionam e orientam
o cotidiano de jovens e adolescentes encontramos a ideia da “vida loka”.
Os
estudos que analisam esse tema na perspectiva das camadas mais pobres da
periferia paulistana apontam esta expressão como a verbalização de uma guerra
diária, de um enfrentamento que vai além das dificuldades materiais para
sobreviver e vencer a pobreza. A idéia central da vida loka é a de que viver
nas periferias é mergulhar em múltiplos e variados conflitos que atingem sem
trégua os seus moradores. São conflitos entre ricos e pobres, brancos e negros,
homens e mulheres, entre os próprios pobres, diante da realidade que opõe os
apelos da propaganda às possibilidades reais de consumo, em meio às relações e
às frustrações da busca de visibilidade e identidade para sair do anonimato e
saborear centelhas de afirmação social. Neles, as atitudes individuais podem
variar a cada momento mesclando esperteza, esforço pessoal, acomodação oportunista
a formas que permitem alcançar os objetivos almejados à custa dos demais,
pequenos furtos e, às vezes, a adesão em graus diferenciados ao que é oferecido
pelo tráfico. Nesta visão, a rotina corre em meio a batalhas cotidianas,
grandes e pequenas, mas que sempre dizem respeito a confrontos reais. A idéia
da guerra descreve uma luta permanente, de todos contra todos, vista ora como
uma fatalidade, ora como uma realidade que precisa ser superada, mas sempre
como elemento que faz a paz ser relegada ao campo do impossível, à esfera de
uma utopia desejada e irrealizável.
A vida loka expressa assim um
cotidiano conturbado que faz o sujeito experimentar uma insegurança permanente,
apela a uma preocupação constante de se proteger da violência, a esperá-la como
algo próprio de uma guerra, a vivê-la com a naturalidade de quem precisa se
defender e não vê saída. Trata-se de uma realidade diante da qual todos podem
vir a ser vítimas ou algozes a depender do momento, das reações esboçadas, da
posição assumida no combate diário, da rejeição dos limites impostos pela
marginalização, da recusa do conformismo ou da disposição a se submeter a um
destino visto como inevitável.
Neste ambiente de imprevisibilidade
(caracterizado por paixões, violências, ódios, amores intensos, rancores ou desforras),
os caminhos que levam à vida ou a morte podem se cruzar a qualquer instante,
sem aviso prévio, sem cálculos possíveis, sem que haja uma lógica capaz de
explicar e dar sentido aos acontecimentos. Na vida loka, o encontro com a morte
violenta pode ocorrer por motivos banais e circunstâncias do cotidiano que ganham
caráter explosivo, pela mágoa de quem se sentiu traído, pelo viver diariamente
em situação de risco, pelo se deparar inesperada e subitamente com a última
gota que faz transbordar o vaso das humilhações e sofrimentos diários numa
reação em cadeia que atinge indistintamente gente boa e ruim.
Ao procurar uma reparação imediata
dos sofrimentos vividos, o turbilhão de sensações e tensões, próprio desta
guerra permanente, dá origem a uma trama complexa onde a razão de ser de cada
reação (vista, experimentada ou produzida pelo sujeito) se não for arbitrária,
excessiva ou incoerente, é sempre pouco clara. Enquanto parte das expressões do
senso comum, viração e vida loka produzem comportamentos que se traduzem num
“proceder” tão ambíguo, instável e contraditório quanto a realidade em relação
à qual pretende orientar o agir dos indivíduos. Mescla de anseios, frustrações
e limites impostos pelo ambiente circunstante, o “proceder” se apresenta como
um ideal de conduta a ser respeitado, mas que, ao mesmo tempo, tem que acertar
contas com as contradições da realidade e com a impossibilidade de ter domínio sobre
a própria vida devido à caótica situação de riscos e incertezas.
Longe de ser a expressão coerente de
um conjunto de valores, ideias ou atitudes com a qual se guiar num cotidiano
imprevisível, o “proceder” revela os traços confusos de quem busca a realização
individual num mundo dominado por um estado de guerra permanente. De um lado,
almeja se distanciar de um oportunismo covarde e mesquinho, próprio de quem
quer sempre mais sem se importar com a forma de consegui-lo. De outro, faz cálculos
para se dar bem ou se promover aproveitando das contrações do cotidiano e das ideias
de afirmação social que impregnam o ambiente.
Sobreviver na adversidade, mantendo
a integridade possível, transforma o “proceder” num caminho tortuoso, cheio de
idas e vindas, avanços e recuos, movimentos arrojados e silêncios prolongados.
Suas linhas de conduta criam impasses perante os quais o sujeito não dispõe,
nem pode encontrar uma solução coerente, mas, graças a elas, esboça as
diferenças de percepção e vivência num ambiente em que, como numa verdadeira
guerra, não se pode vacilar.
É neste espaço, onde não há
referências estáveis, em que as fronteiras entre o lícito e o ilícito são
porosas e movimentadas, que adolescentes, jovens e adultos precisam construir
seu dia-a-dia numa realidade que só promete medo, incerteza e imprevisibilidade.
Ensinar nas escolas da periferia paulistana demanda, em primeiro lugar,
construir um diálogo entre a ação educativa e o mundo da vida loka, da viração
e do “proceder”. Temos aqui a necessidade primordial de professores e
professoras entrarem em sintonia com este universo onde a progressiva
deterioração das relações humanas ocupa o centro das explicações possíveis para
o cotidiano macabro das instituições públicas de ensino fartamente relatado
pela mídia.
Trocado em miúdos, antes mesmo de
iniciar o ano letivo, seria necessário se perguntar o que, na fugacidade
caótica da vida loka, ainda faz sentido para alunos e alunas das periferias. Mergulhados
nela, eles veem o futuro como espaço interditado e o presente como um
redemoinho de sonhos, ilusões, humilhações, frustrações e impossibilidades. Que
ensino e que pedagogia permitem construir esta sintonia? Que relação
professor-aluno se faz necessária para que o primeiro consiga ganhar a
confiança do segundo como passo essencial para ser ouvido e respeitado? Que
demandas podem atrair ou contrapor esses dois mundos frequentemente tão
distantes quanto a relação entre o papel de educador idealizado no início da
carreira e os seguidos fracassos que a realidade impôs?
Sim, sabemos que nem todos
mergulharam na viração, nem vivem a vida loka das periferias paulistanas. Mas,
ao realçar as cores destas realidades, queremos evidenciar a oposição frontal
que se instaura entre as expectativas dos docentes e o universo onde são
chamados a intervir. Explicar o fracasso escolar como resultado da ausência de
um processo educativo no ambiente familiar é algo tão superficial e incapaz de
ler a realidade a ponto de não perceber que a vida na sala de aula apenas
reflete a desestruturação econômica, social e humana pelo qual passaram muitos
pais e alunos.
Em geral, o diálogo com os docentes
revela a expectativa de ter alunos com certa pré-disposição a aprender, o que
se aproxima do que é comumente encontrado em famílias estruturadas ou de faixas
de renda superiores. Em seu interior, as crianças foram incorporando valores e
comportamentos favoráveis aos estudos na fase pré-reflexiva, graças à imitação
do que os pais faziam. Desde a infância, filhos e filhas dos setores médios da
sociedade costumam ver os adultos lendo um livro, jornais ou revistas; têm
parentes que falam outra língua ou irmãos mais velhos que ensinam a desvendar
os segredos do computador através de jogos e brincadeiras. O processo de
identificação afetiva leva a imitarem aqueles que amam sem que isso passe por
uma percepção consciente das escolhas feitas, mas de forma tão natural e
espontânea quanto respirar ou andar.
Na medida em que a convivência e a incorporação de atitudes simples (como
brincar de ler ou permanecer sentado para ouvir uma história) ajudam a
disciplinar o próprio corpo e a mostrar a importância da leitura, as crianças
abrem caminhos tanto para o aprendizado como para dar valor aos elementos que o
constituem. Ao ingressar na escola, quem passou por este caminhar tem mais
chances de se deparar com uma situação para a qual seu corpo já incorporou atitudes
que tornam o estudo menos pesado e cansativo.
Por sua vez, o bom desempenho escolar será mais facilmente recompensado
no ambiente doméstico com gestos de amor e aprovação dos pais. Sabendo que
estes são importantes por se tornarem objeto de reconhecimento e autoestima
para si próprio, o aluno tende a pautar suas ações no sentido de receber
constantemente as formas que demonstram a valorização do seu empenho nos
estudos. A carga afetiva transmitida aos filhos com ações e palavras que
expressam exemplos vivos, aliada a atitudes de vigilância e incentivo, faz com
que, pouco a pouco, a criança transforme o desejo de sucesso na escola dos que
ela ama em seu próprio desejo.
Por outro lado, um ambiente marcado pela desorganização familiar, por
violência, abandono, descaso ou no qual as horas de convivência não apontam com
gestos a importância dos estudos, tendemos a nos deparar com o processo oposto
ao que acabamos de descrever. A longa série de conselhos verbais tem o mesmo
peso das palavras pronunciadas por um pai fumante que, ao tossir com o cigarro
na boca, recomenda ao filho de não fumar pelos males que isso vai causar.
Apesar das dificuldades que marcam o cotidiano, as famílias na base da
pirâmide sabem que estudar é importante, querem que seus filhos estudem e fazem
o que está a seu alcance para que eles se empenhem e tenham sucesso na escola.
Neste sentido, não deixam de aconselhar, nem de puxar as orelhas para que eles transformem
em bons resultados escolares os sacrifícios despendidos em trabalhos estafantes.
O problema é que, no dia-a-dia da relação, e sem se aperceberem disso, partilham
com eles momentos de vida que, na maioria das vezes, não ajudam no desempenho
escolar e deixam cair no vazio os incentivos verbais. Onde não há exemplos
concretos, palavras e conselhos apontam para um mundo estranho e os esforços
solicitados acabam não fazendo sentido.
O quadro se torna ainda mais sombrio
sempre que, ao frequentar a escola, se deparam com punições que os caracterizam
como maus alunos e reafirmam seu desinteresse ou incapacidade de aprender. Sem
perceber que há um potencial aprisionado por uma dura realidade, as avaliações
corriqueiramente aplicadas não servem para aprimorar a forma de intervenção
docente necessária para dialogar com a realidade do aluno e tentar libertá-lo
do que dificulta o acesso ao conhecimento. Menos ainda, podem ser usadas para
alimentar o interesse pelos estudos, mas ajudam somente a separar alunos e
alunas que se ajustam a exigências pré-determinadas dos que não se encaixam no
molde e, portanto, são fadados ao fracasso. O resultado inevitável é uma
sequência de situações humilhantes contra as quais crianças e adolescentes se
revoltarão à sua maneira com formas e ações por demais conhecidas.
Com isso, não afirmamos que há uma
determinação mecânica para o sucesso ou o fracasso nos estudos em função da
origem social ou das atitudes presentes no ambiente familiar. Exceções sempre
acontecem, mas sua ocorrência não desmente as reflexões apresentadas. Nosso
objetivo é de reafirmar a necessária busca de sintonia com a realidade em que
vivem os alunos. É graças a ela que o docente, nos limites das condições dadas,
começa a esboçar os caminhos de um aprendizado aberto a todos.
6. Quando tudo parece
não ajudar...
Nossas reflexões seriam incompletas
se não separássemos as dificuldades de escolarização, próprias do indivíduo,
das que são produzidas nas redes de ensino. Infelizmente, o crescente processo
de medicalização dos transtornos de aprendizagem tende a transformar questões
coletivas em casos individuais nos quais a escola parece não ter participação.
O discurso que aponta os distúrbios psíquicos do aluno como responsáveis pelo fracasso
escolar dificulta a percepção dos problemas que têm origem na escola e é
facilmente assimilado pelas famílias que procuram ajuda especializada a fim de
resolver o que, em grande parte dos casos, está ao alcance das redes de ensino.
Ainda assim, vamos por partes.
Em sala de aula, um dos aspectos
essenciais para abrir a porta do conhecimento aos alunos é, sem dúvida, a
qualidade da relação que o docente consegue construir com eles. O ser humano,
de fato, aprende daqueles aos quais dá o direito de lhe ensinar. Na medida em
que a relação se torna significativa para o aluno, vai abrir caminhos à
aprendizagem. Neste sentido, as diferenças de ambiente, classe social, lugar de
origem, religião, situação familiar, etc., devem ser apenas um convite para o
docente conhecer o meio em que vivem e se movimentam seus alunos e não motivo
para julgá-los ou menosprezar suas possibilidades.
Entre os aspectos que chamam à atenção,
encontramos as condições físicas do ambiente destinado ao aprendizado. Não são
poucos os prédios que se parecem com cadeias, com espaços comuns sem iluminação
natural, salas apertadas, que contradizem as condições climáticas da região e
sem um mínimo de conforto para professores e alunos. Construídas com base em
projetos que otimizam a utilização dos espaços, sem levar em consideração o
fato de serem ambientes escolares, as estruturas físicas com as quais nos
deparamos muitas vezes dificultam a atividade docente ou impedem que se crie um
ambiente de concentração e dedicação aos estudos.
A produção de educadores e alunos
fracassados ganha outro forte aliado no autoritarismo que marca a implementação
das políticas públicas na educação. Basta pensar, por exemplo, na introdução da
progressão continuada ou na determinação de a escola receber alunos portadores
de necessidades especiais. Para além da importância e do valor pedagógico
destas medidas, o fato é que elas são “jogadas” como uma bomba no ambiente escolar
sem que haja o devido preparo do docente, das instalações, do material a ser
utilizado, sem a redução do número de alunos por sala, enfim, desconsiderando a
realidade. Frequentemente, sua aceitação se dá apelando ao mito pelo qual o
“bom professor” é aquele que sempre dá conta do recado ou a valores éticos
inquestionáveis. Então, por omissão, por não querer ser chamado de “ruim” ou parecer
discriminador e preconceituoso, o docente consagra com o silêncio a adesão a
algo que não tem como dar certo.
Processo parecido ocorre com os
cursos de formação continuada, reciclagem profissional ou outros eventos para
melhorar a competência técnica dos educadores vistos como estratégia para
elevar a qualidade do ensino. Partindo de uma suposta incompetência, aplicam-se
cursos e ensinam-se métodos que não dialogam com os saberes nem com as
condições reais em que se realiza o trabalho docente, o que, por si só, costuma
ser suficiente para inviabilizar a aplicação dos conteúdos aprendidos. Longe de
ajudar a organizar o cotidiano em sala de aula, a frustração oriunda do
fracasso acaba colocando o professor no banco dos réus e reafirmando seu
despreparo como razão da má qualidade do ensino, apesar dos esforços do Estado.
Por sua vez, os baixos salários põem
em movimento uma dinâmica perversa. A necessidade de garantir condições dignas
de sobrevivência e proporcionar o aperfeiçoamento profissional fora do que é
oferecido pelas políticas públicas leva inúmeros docentes a aumentar a carga
horária semanal. A conseqüência óbvia desta escolha é uma crônica falta de
tempo para preparar aulas à altura das necessidades dos alunos, para se
informar, para aprofundar temas e conteúdos, para participar de momentos que
permitam estreitar relações com a comunidade local. Isso sem contar os passos
que o excesso de trabalho leva a dar em direção ao adoecimento psíquico ou à
migração para outras ocupações como forma de integrar o orçamento familiar.
Somados à precariedade das condições de trabalho, os baixos salários produzem
sentimentos de desvalia uma vez que o ordenado é a representação monetária do
valor do próprio trabalho pelo empregador e uma prova do baixo reconhecimento
dos esforços despendidos. Se, de um
lado, um bom ganho salarial não garante, por si só, a qualidade do processo educativo,
de outro, qualquer proposta séria de melhoria do ensino passa necessariamente
pela elevação salarial daqueles que a fazem acontecer.
A rotatividade dos profissionais nas
escolas é, sem dúvida, outro elemento que contribui para dificultar o processo
de ensino-aprendizagem nos moldes que descrevemos. Sua ocorrência quando de
afastamentos, licenças, remoções ou cargos assumidos em função de concursos
rompe os vínculos essenciais entre educadores, escola, alunos, comunidade
local, diretor e coordenadores pedagógicos. A entrada e saída de pessoas no
grupo que integra o efetivo docente tende a produzir desapego à instituição e a
romper a identidade coletiva cuja formação e reestruturação demandam tempo,
convivência, construção de projetos e soluções de conjunto. Quanto mais frágil
a identidade que professores e professoras conseguem desenvolver, maiores serão
as dificuldades de criar espaços sistemáticos de reflexão. É fato que até mesmo
onde estes são estabelecidos por horários específicos no interior da jornada de
trabalho, acabam sendo usados para corrigir provas, desabafar a irritação com
os alunos, trocar receitas, falar da vida fora da escola. Ninguém nega que isso
ajude a descontrair e a aliviar as tensões, mas não integra profissionais num
projeto coletivo.
Graças à rotatividade e a seus
efeitos sobre o grupo, no lugar de uma equipe docente, é comum encontrarmos um
ajuntamento de professores e professoras que pensam e atuam de maneira
individualizada, solitária, competitiva e, não poucas vezes, hostil. Este
quadro produz resultados ainda mais nefastos quando da falta ou troca de
docentes sem uma substituição à altura, com dispensa de alunos, juntando
classes sem atividades apropriadas e na falta de apoio de supervisores,
diretores e coordenadores pedagógicos. Quanto mais a escola estiver longe do
centro, mais estas situações se repetem e dificultam a relação com alunos e
bairros cujas carências e especificidades demandariam uma presença mais
prolongada como condição para construir um projeto educativo à altura dos
desafios da realidade.
Além dos elementos apontados acima,
ao analisar a atividade docente, nos deparamos muitas vezes com preconceitos e
situações humilhantes que em nada ajudam a moldar a relação de confiança da
qual falávamos no início do capítulo. Que os alunos das camadas sociais
empobrecidas costumam ter baixo acesso à cultura, falam errado, são oriundos de
situações familiares complexas ou carregam carências afetivas próprias da
degradação do ambiente em que vivem, não é novidade para ninguém. O problema
vem quando esses elementos que deveriam ser levados em consideração para a
escolha de um projeto pedagógico tornam-se motivo para justificar a aplicação
de aulas repetitivas e desinteressante, para um olhar docente que não acredita
em sua capacidade de aprender ou até mesmo para situações de humilhação que, na
maioria dos casos, são expressões de frustração e estresse de quem ensina. A
raiva que marca os desabafos em sala de aula degrada a relação que precisa ser
construída para viabilizar o aprendizado e só produz mais irritação e respostas
agressivas.
A somatória destes fatores eleva o sofrimento de quem já está sofrendo.
Docentes, alunos e famílias passam a se digladiar em discussões inúteis e
desgastantes. A procura de um culpado substitui reflexões sérias sobre a
prática em sala de aula, fecha as portas ao diálogo possível, impede de ver a
realidade e o peso da própria responsabilidade. O resultado final não pode ser
outro: apatia, resignação, indiferença, conformidade, passividade,
desvalorização, sobrecarga, estresse, enfim, um clima impróprio para o
exercício do magistério.
Longe de aproximar e gerar expressões de solidariedade, o sofrimento
assim vivenciado afasta, opõe, estimula divisões entre os que deveriam se unir.
O que os docentes raramente percebem é que as situações humilhantes e
preconceituosas na relação com os alunos das camadas mais pobres alimentam
neles um conceito de si mesmos que influencia negativamente seu comportamento e
seu desempenho num processo cumulativo que leva à perda de traços de humanidade
e à ampliação da dor que atravessa gerações. A dor que machuca o humilhado das
camadas mais pobres vai além de algo momentâneo ou suportável até que novos
acontecimentos tragam alívio e esquecimento. É uma dor que atinge feridas
abertas, que se soma a um fardo anterior cujo razão de ser pode ter se perdido
no tempo, que é coletivamente padecida, mas age no sujeito como algo que corrói
por dentro, eleva sua angústia e fere como espinho na carne.
Ao penetrar mais profundamente em função de alguma palavra, gesto ou
situação de rebaixamento, este espinho produz novas razões de sofrimento que
perturbam o já precário equilíbrio emocional, deixa lembranças que desarrumam
as possibilidades de uma reação positiva, dá asas a expressões raivosas e
violentas que vêm à tona como um pedido de socorro ou até mesmo sem que o
indivíduo tenha uma explicação consciente das razões pelas quais age daquela
forma. Na medida em que o docente não se vê no lugar do aluno e é incapaz de
visualizar o impacto real de sua postura sobre ele, o resultado final só pode
ser desastroso tanto em termos de diálogo, como de produção do conceito de si
mesmo por parte do próprio aluno.
O que os docentes costumam esquecer é que as pessoas não deixam sem
resposta as situações de humilhação, maus-tratos ou preconceito de que são
vítimas. Suas reações podem variar a depender do grau de compreensão da
realidade ou do sofrimento acumulado; se expressar no gemido surdo de quem
engole mais um sapo, no esforço silencioso para neutralizar o que está se
tornando insuportável, na raiva despertada pela humilhação, no bloqueio causado
pelo medo de novas situações humilhantes; ou explodir na rejeição inconsciente
de uma situação que soa como uma condenação ao fracasso.
Por outro lado, podemos nos deparar também com formas de resignação
servil que tratam de adequar o sujeito a um sentido forçado e postiço no qual
diz acreditar para se ver livre de um problema ou para dissimular os efeitos
nefastos das humilhações sofridas. Cedo ou tarde, o silêncio que acompanha o
conformismo assim obtido deságua em formas de submissão raivosa que emergem ora
em maquinações maliciosas e veladas, ora em expressões ao mesmo tempo violentas
e impotentes à medida que a irritação do indivíduo se mescla à consciência de
que ele não porá em prática as ideias de vingança. Não poucas vezes, a
humilhação e o preconceito, ainda que veiculados de forma inconsciente,
alimentam situações de ressentimento que levam os atingidos a retirarem a
confiança e a esperança depositada nos demais.
O julgamento dos golpes recebidos também pode levar a uma resignação na
qual o sujeito vai construindo uma interpretação que não se encaixa nas
opiniões publicamente aceitas, ganha as cores de um protesto invisível e discreto,
mas que prepara uma reação capaz de expressar sua revolta. Isso ocorre na
medida em que o significado atribuído às situações de rebaixamento vivenciadas
rompe a inércia produzida pelos entendimentos típicos dos que optam por se
conformar e, com o tempo, se torna ação. Esta pode ser impulsiva, raivosa e
solitária, como ocorre na maior parte das vezes, ou funcionar como uma pedra
lançada na água parada. Por pequena que seja, produz ondas que despertam
indignação, incomodam e demandam respostas ao dialogarem com os sentimentos dos
humilhados que, apesar das diferentes reações diante dos acontecimentos, têm em
comum o fato de abominar o rebaixamento social.
Por teóricas e incompletas que sejam estas breves constatações, é fato
que, quando nos dispomos a ouvir de perto as vítimas da humilhação, as
impressões gerais do senso comum das quais somos portadores cedem o lugar a uma
realidade bem mais dura e sofrida da que podíamos imaginar. Os gemidos desse
sofrimento não podem ser ouvidos num contato rápido e descomprometido, mas tão
somente quando a disposição ao diálogo com a realidade de marginalização se
prolonga no tempo, ganha as feições de um compromisso cuja primeira expressão é
facilitar que os humilhados de sempre possam dizer o que realmente sentem e não
apenas o que suportamos ouvir.
Por isso, ensinar implica em realizar diariamente ações, gestos e
escolhas que colocam de lado as prescrições oficiais e desafiam a criatividade.
Garantir abertura e capacidade de construir um saber prático diante da
imprevisibilidade que marca presença em sala de aula é condição necessária para
viabilizar o engajamento do corpo e da inteligência, desenvolver jogo de
cintura, manter ativa a habilidade que nos permite sentir, pensar e,
obviamente, desafiar a realidade. E não é pra menos. Como em qualquer profissão,
os docentes são chamados a acertar contas com a diferença entre o trabalho
imaginado, prescrito e real.
O primeiro reúne as expectativas, projeções, anseios, sonhos, angústias
e desejos de reconhecimento na busca da realização pessoal e profissional como
condição para um equilíbrio emocional e mental duradouro. O segundo define o
campo das prescrições legais, das normas internas, das regras que delimitam
áreas e servem como critério de avaliação dos resultados. O trabalho real é
constituído pela experiência em sala de aula, ao vivo e a cores, dia após dia.
Este último patamar convoca o docente a preencher as lacunas com os níveis
anteriores, derrota prescrições e projeções, coloca em cheque o saber prático
acumulado, alimenta a distância entre a realidade material e a capacidade de
previsão, desafia a inteligência e a criatividade e não poupa surpresas
desagradáveis, sentimentos de impotência, decepção, irritação e esmorecimento.
O trabalho docente impõe a necessidade de lidar com o desconhecido, de
ampliar os próprios horizontes, de tentar o novo, de questionar o que se
apresenta como natural e consolidado, de acreditar que o gosto amargo do
fracasso é um dos elementos para continuar buscando respostas a uma realidade
que não se deixa dominar por completo. Este fracasso é o meio pelo qual
percebemos a distância que existe entre o trabalho imaginado, prescrito e real.
É algo que sempre provoca sofrimento, se revela no mau desempenho do aluno, na
frustração diante dos magros resultados após horas de dedicação, na percepção
de que os elementos destinados a proporcionar segurança e autoconfiança
evaporam diante de uma realidade que se burla do saber de quem ensina. Enfim,
um fracasso que faz os docentes caírem de boca diante do inesperado e projeta
num caminho a ser aberto o passo necessário para a própria realização pessoal
em nome da qual o cumprimento das normas promete apenas uma longa lista de
decepções e impossibilidades.
As coisas se complicam quando a esta realidade acrescentamos outro
ingrediente: o papel do conhecimento num mundo moldado por relações de
desigualdade, poder e dominação. Ensinar a quem está na base da pirâmide
social, implica em engajar a capacidade docente para vencer as condições e os
desafios de um mundo hierarquizado, ordenado em volta das necessidades da
exploração, prenhe de uma coerção que ora vem à luz de forma franca e aberta,
ora se disfarça em situações corriqueiras. Assim, “dar aula” implica em tomar
posição, em experimentar as resistências e os receios próprios do ambiente em
que a escola se insere, em superar preconceitos e em pilotar formas de acesso
ao conhecimento com alunos que vivem em realidades que desafiam o professor
mais preparado. Não é algo que um indivíduo pode fazer, mas é obra de um
coletivo que coopera, torna-se capaz de uma cumplicidade positiva e
inteligente, para o qual dar aula não se limita a trabalhar numa escola, mas é
sinônimo de disponibilidade a construir constantemente o viver juntos naquele
ambiente.
A cooperação, porém, não é algo dado, evidente, ao alcance da mão nem,
muito menos, uma necessidade que se impõe por si mesma. Cooperar supõe
transformar vontades individuais em objetivos comuns e é tão desafiador quanto
transformar em coral um grupo de solistas convencidos dos próprios talentos.
Para que isso seja possível, são necessários desprendimento e vontade de dar o
melhor de si, ao mesmo tempo em que cooperar significa, pelo menos em parte,
conter a própria subjetividade, saber escolher o momento de avançar e de recuar,
de apressar ou segurar o ritmo para que o coletivo possa se apropriar do
momento, de renunciar a algo imediato para que o próximo passo seja possível.
Quanto mais afastados estivermos desta realidade, mais abriremos a porta
a um individualismo vazio e desgastante, a uma relação interpessoal que
descamba em conflitos, rasteiras, falta de ética, cinismo, ao que contribui
para destruir a criatividade, a subjetividade e as próprias bases da saúde
mental. Aos poucos, a ausência de cooperação se transforma em veículo para a
solidão, para a incapacidade de dar sentido ao cotidiano, para alimentar o
isolamento, a apatia, a sensação de impotência e desamparo que abrem caminhos
ao adoecimento psíquico.
Se, de um lado, vivemos numa sociedade que busca a visibilidade e a
ascensão social a qualquer preço, de outro, é preciso resgatar que nada disso
funciona por si só. Para funcionar a contento, um sistema de opressão não se
limita a usar o medo para conseguir a obediência dos homens e das mulheres
sobre os quais se impõe, mas busca a adesão ativa destes à lógica da submissão.
Uma adesão que implica em dedicar inteligência, compromisso e zelo a uma ordem
que irá reproduzir e ampliar as desigualdades, num processo de servidão
voluntária que destrói o indivíduo na mesma proporção em que garante levá-lo ao
topo da realização possível em seu meio.
Diante da sedução que convida a rejeitar a cooperação em nome do sucesso
individual, o trabalho docente capaz de dialogar com a realidade local, de se
reinventar constantemente, de transgredir os limites da dominação, de gerar
confiança, solidariedade e reconhecimento depende da construção de um espírito
de coletividade capaz de enfrentar os desafios que o presente impõe.
7. Educação e qualificação
para o trabalho: pistas para a reflexão.
A esta altura, acreditamos ter conseguido provar que o centro a partir
do qual se definem as mudanças, ou a manutenção, dos aspectos que moldam a
educação está situado no mundo do trabalho e, especificamente, nas relações de
produção e de poder. Suas características e expressões podem variar a depender
das peculiaridades da região, da conjuntura do país, dos altos e baixos da
economia mundial e da luta da classe trabalhadora, mas a bússola que marca o
destino final tem o indicador apontado para o lucro. Para que este objetivo
central do sistema se realize no presente e se perpetue, o capital busca se
apropriar de toda a força de trabalho que esteja em condições de gerá-lo, ao
mesmo tempo em que a dinâmica da acumulação marginaliza setores da população a
ponto de impedir que tenham condições suficientes para serem explorados.
A escola que o capital deseja é a
que proporciona o grau máximo de aproveitamento da força de trabalho e que se
adapta às necessidades do mercado para oferecer qualificações, competências e aspectos
disciplinares que proporcionam a ampliação do exército industrial de reserva rumo
à manutenção de um baixo nível salarial. Privada ou pública, uma instituição de
ensino cumpriria o seu papel sempre que fosse capaz de criar nos alunos a predisposição
a atender às demandas da produção e a reproduzir em seu cotidiano os elementos
dos quais o sistema precisa para se perpetuar. A ligação escola-trabalho,
portanto, traz em si o pressuposto pelo qual o ensino vale à medida que
assegura um grau de confiabilidade suficiente da classe trabalhadora, num processo
que reduz progressivamente sua bagagem cultural e capacidade de resistência.
Trocado em miúdos, as relações de poder que estendem seus tentáculos a
partir da produção da riqueza decretam o fracasso das próprias diretrizes
básicas da educação e declaram guerra aos que teimam em formar pessoas que
sejam capazes de pensar, criticar, acompanhar os passos de quem dirige a vida
em sociedade ou buscam o conhecimento para construir um mundo onde haja tudo
para todos.
A base a partir da qual reafirmamos nossas posições iniciais não se
encontra em elementos abstratos da teoria, mas na realidade de um mundo que
sairá da crise econômica atual à custa de uma ulterior precarização do emprego e
de um vigoroso arrocho salarial como caminhos para impulsionar uma nova fase de
crescimento. No Brasil, os empresários já atuam em defesa da terceirização nas
atividades fim de seus empreendimentos, rumo a um forte e imediato barateamento
dos custos do trabalho. Enquanto no Brasil apenas 10% das empresas lançam mão
deste meio, na União Europeia a porcentagem atinge os 50% e nos Estados Unidos
beira os 75%. Sendo assim, o cenário mais provável é que, no futuro próximo,
uma porcentagem bem maior da classe trabalhadora local verá encolher seus
ordenados e ficará à mercê de um processo que precariza as formas de seguridade
social, amplia a rotatividade e apaga os registros que permitem delinear a
relação doença-trabalho-exploração.
Se isso não bastasse, se multiplicam os intelectuais a serviço da elite
que defendem reajustes salariais com base na elevação da produtividade e não no
aumento do custo de vida. O constante arrocho salarial a ser proporcionado por
esta medida ampliaria a sobrevida que o fortalecimento da terceirização dará às
máquinas obsoletas da base produtiva do país, engordaria ainda mais os lucros e
criaria uma realidade frente à qual os conteúdos dos ensinos fundamental e
médio pareçam elevados demais para as necessidades reais do mercado de trabalho.
Prova disso já pode ser saboreada na reação dos empresários ao ponto
mais polêmico do Plano Nacional de Educação (PNE) que prevê a ampliação dos
recursos de um mínimo de 7% a um máximo de 10% do PIB. Definido como um
“suicídio” pelos mesmos patrões que acusam a escola de não qualificar pessoas
para a produção, a futura elevação das verbas destinadas a este fim é
publicamente condenada como uma ameaça ao país. Ciente de que isso poderia
gerar indignação popular, em 28 de maio do ano em curso, a Comissão de Assuntos
Econômicos do Senado aprovou o PNE com uma manobra que começa a esvaziá-lo. No
lugar de a porcentagem do PIB se referir ao Investimento Federal em Educação
Pública, o texto foi alterado para que o dinheiro se refira ao Investimento
Público em Educação. A troca de palavras permite que sejam incluídas na conta,
por exemplo, a renúncia fiscal com o Programa Universidade para Todos (PROUNI),
que concede bolsas em instituições particulares de ensino superior, e os gastos
do “Ciência Sem Fronteiras” que envia brasileiros para estudar em universidades
fora do país, além de dispêndios que têm a ver com a educação, mas passam longe
do espírito inicial do PNE. E este promete ser apenas o começo do processo que
levará a desfigurar o Plano no debate parlamentar.
O panorama que esboçamos nos permite traçar às conclusões que seguem:
- Não existe uma educação neutra. Há, sim,
sempre e somente, um sistema educacional atrelado à manutenção e
aperfeiçoamento das relações sociais de produção que não hesita em
utilizar os mais variados meios para esvaziar possíveis oposições. Das
condições de trabalho aos baixos salários, força-se a instalação de uma
realidade que impede objetivamente a implantação de alternativas de ensino
capazes de se tornar um incômodo ponto de referência. Nas recentes
mudanças na organização das escolas estaduais de São Paulo, chega-se a
permitir que os docentes trabalhem até 65 horas semanais como forma de
completar o quadro de funcionários e arredondar os salários. De que maneira
profissionais com esta carga horária encontrarão condições para atualizar
seus conhecimentos e preparar as aulas é um mistério que a secretaria da educação
não pretende desvendar. Mas, com certeza, o nível de estresse, adoecimento
psíquico, fracasso escolar e do que impede um processo educativo que
interessa à classe trabalhadora se manterá firme e forte apesar dos
discursos oficiais.
- As reflexões que apresentamos desmistificam e
relativizam a ideia pela qual a educação é um remédio para todos os males,
o ponto de partida para a solução dos problemas sociais e o fator
responsável pelo sucesso, ou o fracasso, do cidadão. Sem negar o papel do
ensino na formação do indivíduo, mostramos que, no capitalismo, as formas
de produção e distribuição da riqueza têm um papel determinante na
fabricação do trabalhador desejado, nas contradições que marcam o cotidiano
da vida em sociedade, na história de sofrimento das maiorias e nas suas
possibilidades de futuro. Nesse contexto, a escola que se destina à classe
trabalhadora não desempenha o papel de protagonista, mas tão somente de
ator coadjuvante, sempre a reboque das ações, posturas, valores, ideias e
critérios de análise desejados pelas relações de poder em nome da manutenção
e aprimoramento da ordem.
- Por outro lado, a sala de aula é também o
espaço do possível confronto das idéias. Nela, a transmissão hegemônica do
que é caro às elites depende da presença de educadores formados na escola
do capital, fiéis portadores de expressões aprimoradas de senso comum e paladinos
das concepções de vida dominantes. Docentes assim preparados se contentam
com as aparências na medida em que estas sempre dão razão às aparências;
confundem opinião pública com opinião que se publica; não costumam dispor
de sólidos critérios de análises ou pressupostos críticos; e usam o pensar
da maioria como critério de verdade. Esse resultado só pode ser alcançado
controlando cada etapa da formação do educador como processo essencial à
redução do espaço de autonomia do qual dispõe. E, sempre que esse controle
não atenda os padrões desejados, a instalação de câmaras de vídeo em sala
de aula deve fazer com que o olho eletrônico sirva como mais um elemento
de intimidação.
- A autonomia e a visão classista do docente (como
elementos que possibilitam se apropriar de conhecimentos capazes de
alterar os rumos da vida coletiva) evidenciam o papel contraditório da
educação escolar. Seus conteúdos e posturas podem levar a tomar
consciência da realidade, a encontrar formas de expressar indignação, a
não se conformar e a substituir a resignação pela resistência. O primeiro
passo consiste em entrar em sintonia com o mundo no qual a escola se
insere, em proporcionar o encontro com o prazer de aprender perdido na
história de vida de crianças e adolescentes e em aprimorar tanto as
expressões de sua inteligência e criatividade, como o olhar crítico sobre
a realidade. Ditos profissionais terão que saber a ler o processo que
aprisionou o gosto dos alunos pelo aprender e os levou a reforçarem
atitudes e convicções que criam obstáculos ao aprendizado, levam a
encasular a criatividade, a renunciar a pensar e a conhecer. Ao resgatar o
prazer de aprender, o próprio docente terá de volta o prazer de trabalhar
aprendendo e de aprender trabalhando.
Esta não é uma escolha fácil. O que podemos garantir desde já é que virá
carregada de tensões. As relações de poder demandam uma atuação no sentido de
controlar as pessoas, de submetê-las e integrá-las à ordem estabelecida, sem
mais nem menos. Abrir a cela que prende a inteligência dos alunos é um gesto
subversivo que, a exemplo do que ocorreu com Sócrates 24 séculos atrás, pode
atingir o docente com pesadas acusações. Ainda que o avanço tecnológico
proporcione formas de cicuta não letais, a vida se encarregará de colocar uma
pergunta incômoda: de que lado você vai ficar? Responder não será fácil. E
exigirá de quem opta pela classe trabalhadora a paciente construção das
condições que permitem nadar contra a correnteza para liderar a mudança
possível em cada ambiente.
- Último, mas não menos importante, é a
necessidade dos próprios trabalhadores perceberem que a precariedade do
ensino a eles destinado não é algo que diz respeito apenas à capacitação de
alunos e docentes, mas guarda um vínculo estreito com o modelo de país que
está sendo construído. Esperar que a iniciativa privada e o Estado
resolvam o problema é como entregar ao bode a tarefa de tomar conta da
horta. Mudanças irão acontecer, mas sempre de acordo com os interesses do
bode. No momento em que escrevemos é parte do senso comum a percepção de
que a melhoria da educação é “coisa de professor” e de seus órgãos de
representação. Nada mais errado. Ou a classe trabalhadora entra firme na
construção de um projeto educativo que possibilite sair da submissão e do
conformismo ou seguirá ampliando as grossas paredes da cela que aprisionam
suas alternativas de futuro. Além da ação dos movimentos populares, faz-se
necessário e urgente que os próprios sindicatos de trabalhadores das mais
diversas categorias apostem na construção de um projeto de educação a
partir de baixo. O debate que se desenvolverá em torno disso ajudará a
concretizar a discussão sobre o país que precisamos construir como
protagonistas e não mais como figurantes de um roteiro escrito pelos
patrões.
À luz dessas breves reflexões, é evidente que o fracasso escolar não
pode ser entendido como um acidente de percurso que vitima este ou aquele
indivíduo, mas como o fruto esperado da produção da vida em sociedade nos
moldes que descrevemos. A análise desenvolvida faz emergir um cotidiano duro,
desafiador, intrigante, porém real. Não se trata de algo a ser lamentado, mas a
ser reconstruído a partir da ação e da reflexão da classe trabalhadora.
Por isso, não procuramos culpados. Não só porque conhecemos todos e cada
um deles. Mas, sobretudo, porque o debate a ser desenvolvido busca encontrar
quem de fato ajude a construir as mudanças que se fazem necessárias.
Bibliografia:
·
BOURDIEU, P. (Org.). A miséria do mundo. Ed.
Vozes, Petrópolis, 2011, 8ª Edição;
·
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Ed. Bertrand
Brasil, Rio de Janeiro, 2010, 13ª Edição;
·
CABANES, R., GEORGES, I.,
RIZEK, C. S. e TELLES, V. (org.). Saídas de emergência. Ed
Boitempo, São Paulo, 2011;
·
COSTA, F. Braga da. Homens invisíveis: relatos
de uma humilhação social. Ed. Globo, São Paulo, 2008;
· DESCHAMPS,
J.-C. e MOLINER, P.. A identidade em psicologia social – Dos processos
identitários às representações sociais. Ed. Vozes, Petrópolis, 2009;
· DIAS, AGUIAR R., “Modernização e superexploração: o
trabalhador plugado pelo computador”, em Cadernos do CEA, N.º 186, março/abril
de 2000.
· DIAS, FERNANDES
E., Hegemonia: Nuova Civiltá ou domínio ideológico, em: História e
perspectiva N. 5, Universidade Federal de Uberlândia, julho/dezembro 1991.
· DEJOURS,
C. Subjetividade, trabalho e ação, em:
Revista Produção, vol. 14 Nº 3,
setembro/outubro de 2004;
· ____________. O fator humano.
Ed. FGV, Rio de janeiro, 2007, 5ª Edição;
· DEJOURS,
C., ABDOUCHELI, E. e JAYET, C. Psicodinâmica
do trabalho: uma contribuição da escola dejouriana à análise da relação prazer,
sofrimento e trabalho,
Ed. Atlas, São Paulo, 2007;
· FELTRAN, DE SANCTIS G. Fronteiras
de tensão-política e violência nas periferias de São Paulo. Ed
UNESP/Centro de Estudos da Metrópole, São Paulo, 2011;
· ___________. Desvelar a política na periferia:
histórias de movimentos sociais em São Paulo, Ed Humanitas/FAPESP, São
Paulo, 2005;
· FERNÁNDES, A. Inteligência
Aprisionada, Ed. ARTMED, Porto Alegre, 1991;
· FIDALGO F. S. e MACHADO L. R. DE SOUZA (Org.), Controle
da Qualidade Total - uma nova pedagogia do capital, Ed. Movimento de Cultura
Marxista, Belo Horizonte 1996, 2ª edição.
· FOUCAULT,
M. Microfísica do Poder. Ed Graal, São Paulo, 2012;
· GENNARI, E. Automação, Terceirização, Programas
de Qualidade Total – os fatos e a lógica das mudanças nos processos de trabalho,
Ed. CPV, São Paulo 1997.
·
___________. Da
alienação à depressão – caminhos capitalistas da exploração do sofrimento, Mímeo,
São Paulo, 2010, 2ª Edição.
·
___________. Mostrar para esconder – o papel da
mídia na construção do conformismo, Mímeo, São Paulo, 2012.
·
___________. Responsabilidade social da empresa:
uma fábula, em: Cadernos do Centro de Estudos e Ação Social,
Salvador, Nº 211, maio/junho de 2004.
·
___________. Senso Comum e Bom Senso: o que
fazer para lidar com eles? - Uma abordagem do senso comum a partir dos textos
de Antonio Gramsci. Em: Cadernos do Centro de Estudos e Ação Social,
Salvador, Nº 201 e 202 setembro/outubro e novembro/dezembro de 2002.
· GENTILI, P. A. A. (Org.), Pedagogia da Exclusão
- crítica ao neoliberalismo em educação, Ed. Vozes, Petrópolis 1996, 2ª edição.
· GENTILI P. A e SILVA T. T. (Org.), Neoliberalismo,
qualidade total e educação - visões críticas, Ed. Vozes, Petrópolis 1995,
2ª edição.
· GOMES H., Qualidade Total na Escola -
Padronização, Ed. LE/Pitágoras Tec., Belo Horizonte 1994.
· GRAMSCI A, Quaderni del Carcere, edizione
critica dell’Istituo Gramsci a cura di Valentino Gerratana, Ed. Einaudi, Torino
1977.
· GUILLON A B. B. e MIRSHAWKA V., Reeducação -
Qualidade, produtividade e criatividade: caminho para a escola excelente do
século XXI, Ed. Makron Books, São Paulo 1994.
· HAMYOSHI HITOMI A., Ideologia, relações sociais
e subjetividade - Estrutura ideológica e formas sociais de consciência,
Dissertação de Mestrado, Unicamp, Novembro de 1993.
· HARRIS, RICH J. Non é colpa dei genitori. Ed Mondadori, Milão, 1999;
· JUNQUEIRA P. N., Ideologia e hegemonia - as
condições de produção da educação, Ed. Cortez/Autores Associados, São
Paulo, 1980.
· MANACORDA M. A, História da Educação - da
antigüidade aos nossos dias, Ed. Cortez, São Paulo 1996, 5ª edição.
· MANACORDA M. A, Marx e a pedagogia moderna,
Ed. Cortez/Autores Associados, São Paulo 1991.
· MANACORDA M. A, O princípio educativo em Gramsci,
Ed. Alínea, Campinas, 2007, 2ª edição;
·
NOSELLA P., A
escola de Gramsci, Ed. Artes Médicas, Porto Alegre 1992.
·
SAWAIA, Bader (Org.). As
artimanhas da exclusão – análise psicossocial e ética da desigualdade social. Ed
Vozes, Petrópolis, 2010, 32ª Edição;
·
SOARES, L. E., BILL MV, ATHAYDE, C., Cabeça de
porco. Ed. Objetiva, Rio de Janeiro, 2005;
·
SOUZA DE PAULA, B. (Org.), Orientação à queixa escolar, Ed. Casa do psicólogo, São Paulo,
2010, 2ª Edição;
·
SOUZA, J. A invisibilidade da desigualdade
brasileira. Ed UFMG, Belo Horizonte, 2006;
·
_____________ .
A ralé brasileira – quem é e como vive. Ed UFMG, Belo Horizonte,
2009;
·
_____________ . Os batalhadores brasileiros:
nova classe média ou nova classe trabalhadora? Ed UFMG, Belo Horizonte,
2010;
·
TAVARES, M. A. Os fios (in)visíveis da produção
capitalista – informalidade e precarização do trabalho. Ed. Cortez, São
Paulo, 2004.
·
VÁRIOS AUTORES,
Empregabilidade e Educação – Novos caminhos no mundo do trabalho,
EDUC/Rhodia, São Paulo 1997.
·
WEBBER, Deise
Vilma. Professor no limite. Verdades inconvenientes sobre o exercício da
profissão. Ed. SINPRO. Caxias do Sul, 2012.
[1] Os
dados acima foram divulgados em estudo da ONU e da Federação Internacional de
Robótica e publicados pelo jornal Gazeta Mercantil em 29/10/1997. Neste mesmo
ano, havia diferenças gritantes na comparação entre o Brasil e os países que
primavam por seus avanços na educação. Não por acaso, pelo mesmo estudo, Taiwan
tinha 4.500 robôs, a Coréia do Sul 27.000, a Alemanha 60.000, os Estados Unidos
70.858 e o Japão 399.629.
[2] Dados
extraídos de BRITO, Fausto. Transição demográfica e desigualdades sociais no
Brasil, em Revista Brasileira de Estudos da População, Vol. 25,
Número 1, São Paulo, janeiro-junho de 2008.
[3] Os
dados foram publicados no relatório da ONU sobre a média de anos de
escolaridade para pessoas acima de 25 anos de idade entre 2000 e 2011 e
divulgados pelo jornal Valor Econômico na edição de 14/02/2013. Em termos
comparativos, vale a pena assinalar que, no mesmo período, na China houve uma
evolução de 6,6 para 7,2 anos; na Índia, de 3,6 para 4,4; na Rússia de 9,6 para
9,8; no México de 7,4 para 8,5; na Argentina, de 8,6 para 9,3.
[4] Dados
elaborados pelo autor a partir das tabelas do Censo 2010, divulgadas no site do
próprio IBGE.
[5] Os
dados relativos à rotatividade e à diferença entre os salários dos admitidos e
dos demitidos foram elaborados a partir das tabelas publicadas em dois livros
do DIEESE, Rotatividade e flexibilidade no mercado de trabalho, São
Paulo, 2011, e A situação do trabalho no Brasil na primeira década dos anos
2000, São Paulo, 2012. A porcentagem relativa à remuneração dos
terceirizados consta do estudo da Central Única dos Trabalhadores cujas
conclusões, com base nos dados do CAGED foram divulgadas pele entidade em
16/10/2012.
[6] Dados
publicados em ARBACHE, Jorge, Retorno do investimento em educação está
caindo, em Valor Econômico, 12/03/2013.
[7] Dados
extraídos das tabelas do Censo 2010, divulgadas no site do próprio IBGE.
[8] A
tabela que segue foi publicada pelo jornal Valor Econômico na edição de 14 de
fevereiro de 2013.
[9] Os
dados constam do relatório do CAGED-MTE, Nível de emprego formal
celetista-resultado de 2012, acessível através do site do Ministério do
Trabalho e Emprego.
[10] Idem.
[11] Os dados acima foram publicados na
página eletrônica da BBC em português no dia 22/04/2013 e pelo jornal mexicano
La Jornada em sua edição de 04/08/2013.
[12] Estamos
nos referindo à página eletrônica
http://www.jobisjob.com.br/rj/pintor+industrial/vagas.
[13] Dados
extraídos de DIEESE, Estudo do setor hoteleiro, São Paulo, 2013.
Disponível no site da entidade.
[14] Maiores
informações sobre a organização desses cursos podem ser encontradas em ABUD,
Camila. Escolas criam cursos de língua sob medida para atender a Copa,
em: Diário do Comércio e da Indústria, 19/02/2013.
[15] Um
deles é Jesse Souza que, no livro A ralé brasileira – quem é e como vive.
Ed UFMG, Belo Horizonte, 2009, aponta em um terço da população economicamente
ativa o contingente de pessoas nestas condições.
[16] Para
uma amostra razoavelmente completa do panorama aqui anunciado, recomendamos a
leitura do relatório do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho
Infantil, Crianças e adolescentes no universo do lixo, UNICEF/UBEE/IMS,
2005, que relata a experiência de docentes chamados a ensinarem para crianças e
adolescentes, filhos de catadores, e de onde foram extraídos os adjetivos que
definem sua participação na escola do projeto a eles destinado. Neste trabalho,
que revela um verdadeiro diálogo de surdos entre docentes e alunos, é possível
constatar com riqueza de detalhes a situação que acabamos de introduzir.
Nenhum comentário:
Postar um comentário