segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Fracasso Escolar: Acidente ou Construção?

Se você é estudante nas escolas públicas já deve ter ouvido um milhão de vezes dos seus professores, dos pais, dos palestrante nos cursos de motivação e preparação para o trabalho, nos documentários na TV e até no Jornal nacional: - Estude menino, o mercado de trabalho está muito competitivo, sem qualificação profissional você não conseguirá um bom emprego. Se você não ganha bem é porque não tem formação.  

Segundo a opinião da maioria dos responsáveis pela educação e formação profissional e dos especialistas  em recursos humanos, bem como, da população em geral, o desemprego e os baixos salários são fruto da baixa qualificação e da formação precária da mão de obra. 


Qual educador, professor@ ou gestor, não usou este argumento para convencer os estudantes a serem mais estudiosos e dedicados? Pois bem, você terá uma grande surpresa ao ler o artigo: Fracasso Escolar: Acidente ou construção social de Emílio Gennari. Segundo o autor, ao contrário do que se pensa, na primeira década do século XXI, no Brasil, o maior número de empregos criados foi para ocupações que exigiam menor qualificação. Quanto maior a qualificação profissional, quanto mais alto o nível de exigência menor foi  número de vagas oferecidas. 

Sua pesquisa indicou um fato corriqueiro na indústria, comércio e serviços, etc, a saber, a demissão do trabalhador mais qualificado ou com formação universitária, com doutorado e a substituição destes por profissionais com menor formação. Como disse o filósofo, o que os nossos olhos veem costuma ser o mais falso. Tem que procurar ver com "o olho da mente". 

Leia abaixo o artigo completo e "se surpreenda". Nele você encontrará esta e outras revelações.





Emilio Gennari


Fracasso escolar:

acidente ou construção social?




Ao reproduzir... cite a fonte.




         Índice:



Introdução                                                                                                                                       03


1.      O poder como teia de relações                                                                                                  04


2. Duas décadas de reestruturação produtiva no Brasil                                                                   07


3. Há vagas, mas não trabalhadores para ocupá-las?                                                                       13


4. Famílias e alunos no olho do furacão                                                                                          18

                                  
5. Da “viração” dos pais à “vida loka” dos filhos                                                                           22


6. Quando tudo parece não ajudar...                                                                                               28


7. Educação e qualificação para o trabalho: pistas para uma reflexão                                             33




         Introdução.

            Na maioria das vezes em que a escola pública é objeto de debate, nos deparamos com uma visão que restringe a origem de seus problemas à relação entre pais, alunos e docentes. Convencidos de que a educação é a pedra fundamental da sociedade, nossos três atores acreditam piamente que, com um simples esforço de vontade, as dificuldades iriam sendo resolvidas e os alunos de hoje seriam as pessoas bem-sucedidas de amanhã.

Ao isolar suas preocupações do contexto sócio-econômico em que vivem, não só descarregam um no outro a própria insatisfação, como tornam invisível o elemento que, a nosso ver, forja as condições que levam ao fracasso escolar: as relações de poder. Por isso, a perspectiva que orienta nosso olhar para a realidade não parte da escola, mas da reestruturação produtiva que vem sendo moldada no Brasil a partir dos anos 90.

A preocupação central da análise que aqui iniciamos pode ser expressa através de algumas perguntas: de que trabalhador/a o sistema precisa para dar conta das necessidades da produção e garantir a acumulação de poucos à custa do suor de muitos? Quanto e o que cada empregado/a, a depender da sua função, deve conhecer para ser produtivo sem que o saber adquirido se torne uma ameaça? Como oferecer uma escola para todos sem que a população que dela participa aproveite os conteúdos, valores, idéias e critérios de análises, úteis à geração da riqueza, para questionar os passos de quem dirige a vida em sociedade?

            Questões como estas ultrapassam os muros das instituições de ensino, ampliam os horizontes nos quais devemos procurar respostas convincentes para os dilemas da escola, em geral, e do fracasso escolar, em particular. Longe de excluirmos a priori o papel e os limites das estruturas físicas, da formação e do desempenho dos docentes, do perfil das famílias e dos alunos, apenas entendemos que uma compreensão profunda do que vem ocorrendo em sala de aula deve, em primeiro lugar, centrar suas atenções nas relações de poder que disputam e definem a educação na sociedade. São elas que moldam o contexto em que se inserem as escolas e determinam o patamar de conhecimentos acessíveis aos diferentes níveis da pirâmide social.

            Sabendo disso, a análise do fracasso escolar não pode fugir de outras questões igualmente importantes: de quem depende a mudança que se faz necessária para que a classe trabalhadora encontre na educação parte dos instrumentos da luta contra a exploração? De um Estado a serviço das empresas? De organizações filantrópicas que, nascidas no seio da elite ou dos setores médios da sociedade, partilham os interesses e as diretrizes dominantes? Ou de uma consciência crescente pela qual a mudança só acontece quando nós, trabalhadores e trabalhadoras, a fazemos acontecer?

É com este espírito que convidamos você a caminhar pelas páginas que seguem e a entrar neste debate.

            Emilio Gennari. Brasil, 1º de outubro de 2013.

         1. O poder como teia de relações.

            Quando falamos em “poder”, não estamos nos referindo a um objeto, a uma coisa, a algo que se manifesta da mesma forma em qualquer lugar do mundo e pode ser definido por características universais. Por “poder” entendemos uma prática social construída historicamente e cujas feições dependem de relações presentes no campo da economia, da política e da cultura de um determinado ambiente, em dialogo com o que ocorre em âmbito internacional, no país e diante das reações que a classe trabalhadora vai esboçando ao longo da história.
            Neste contexto, o Estado não pode ser entendido como um bloco monolítico e nem ser reduzido às funções repressivas ou coercitivas dos aspectos que ameaçam a ordem estabelecida. Em seu interior atuam instâncias heterogêneas e interesses contraditórios de grupos que podem se somar ou entrar em choque a depender da correlação de forças que se estabelece em tempos e ritmos ditados pelo desenrolar dos acontecimentos.
O resultado deste embate é a necessidade de planejar e reorganizar constantemente formas de intervenção que constroem o consenso em torno de medidas que visam manter a ordem e administrar seus conflitos rumo ao aprimoramento do processo de acumulação. A capacidade de coordenar e controlar o cotidiano das relações sociais, portanto, se concretiza a medida que o próprio Estado se articula com poderes locais, cujos interesses imediatos podem se diferenciar dos que são apresentados por outros grupos dominantes. Agindo em diferentes níveis e com a autonomia necessária, as relações de poder penetram nas pessoas, moldam sua visão de mundo, definem uma leitura do passado e do presente, delineiam as perspectivas de futuro e fundamentam as formas de visibilidade e ascensão social que influenciarão a sociedade.
A necessidade de universalizar sua visão de mundo para criar o consenso possível leva quem dirige os rumos da produção a fazer com que o povo simples pense e aja de acordo com parâmetros que passam longe da realidade em que vive, dê sua adesão ao que fortalece a exploração e reduza as chances de conflito entre as classes. A estabilidade do equilíbrio de forças conseguido será proporcional à capacidade de integrar os setores subalternos nos projetos das elites, renovando assim a confiança e as esperanças da população no que o sistema pode oferecer.
Para dar conta desse desafio no âmbito da produção, os empresários tratam, literalmente, de “fabricar” indivíduos cujos saberes, idéias e formas de interpretar a realidade contribuam para aprimorar as relações de poder existentes e ocultem seus interesses atrás de valores e padrões de comportamento aceitos como próprios das “pessoas de bem”. Neste esforço, onde nada é deixado ao sabor do acaso, o saber necessário ao exercício da profissão deve ser condizente com as habilidades, competências e atitudes consideradas adequadas ao desempenho das tarefas solicitadas.
As noções a serem incorporadas e a confiabilidade exigida ora pedirão conhecimentos básicos, obtidos no ensino fundamental, na convivência com um grupo ou na experiência pessoal, ora conteúdos de cursos profissionalizantes ou das disciplinas acadêmicas, mas estarão sempre aliados a doses variáveis de saber prático. O processo de formação da força de trabalho mobiliza níveis diferenciados de conhecimentos e contatos pessoais num emaranhado de possibilidades onde a submissão e a resistência às relações de poder se mesclam sem cessar.
Desta forma, a escola é apenas um dos terrenos em disputa na medida em que dela podem sair indivíduos que aceitam se encaixar em moldes pré-estabelecidos ou que são capazes de dizer “não” à ordem. Serão as contradições do real e os conhecimentos que permitem entender sua profundidade a questionar as certezas do senso comum e a proporcionar a indignação que levará o sujeito a optar entre os convites à resignação, à paciência, à submissão ou pela busca do que se opõe a esta realidade.
Saber e poder são dois lados da mesma moeda. O poder sempre demanda a construção de um campo do saber, do mesmo modo em que o saber pode dar origem a novas relações de poder, assegurar seu exercício e evolução ou freá-las e rompê-las. Não há saber neutro possível. Suas origens deitam raízes no complexo emaranhado de relações que buscam adequar, conformar e fazer caminhar as pessoas de acordo com a ordem dominante, mas este mesmo saber, ao ampliar a bagagem cultural e ao iluminar a realidade, pode se tornar subversivo e perigoso. De consequência, canalizar e limitar as possibilidades de adquirir conhecimento é algo estratégico para as elites e a razão pela qual não poupam esforços em controlar o acesso à cultura das classes sociais. Apoderar-se das mentes de jovens e crianças equivale a colocar uma hipoteca sobre o seu futuro, a aprisionar seu desenvolvimento, a contribuir para que tudo mude para que tudo continue como está, dando a impressão de que a sociedade caminha rumo a um futuro promissor para todos.
Esta façanha pode ser obtida dosando o acesso ao saber sem que as formas nas quais este controle se concretiza pareçam violar a suposta igualdade de oportunidades reafirmada a cada instante para que o sujeito deposite suas esperanças no sistema. A impossibilidade de definir por decreto que escolas se destinam aos pobres e quais vão formar os membros da elite não é um problema pra quem controla as relações de poder. A desigualdade econômica se encarrega, por si só, de negar o que a igualdade de direitos parece colocar ao alcance de todos.
A simples possibilidade de pagar, ou não, uma mensalidade e o valor com o qual uma família pode arcar são elementos suficientes para definir que tipo de conhecimento estará à disposição do aluno e restabelecer a hierarquia de quem, tendo acesso ao melhor ensino, se prepara para pertencer à classe dirigente. Basta isso para trazer de volta as discriminações que a universalização do direito à educação parecia ter expulsado. Concretamente, trata-se de manter as pessoas na escola sem que elas tenham os elementos que permitem desvendar a realidade e se apropriar dela para mudá-la.
A peça-chave que permite ocultar esta determinação está em fazer com que as doses de conhecimento dispensadas sejam acompanhadas da convicção de que, no fundo, tudo depende unicamente do esforço pessoal, da vontade de vencer do indivíduo, da sua luta pela empregabilidade e do sacrifício que se dispõe a fazer para merecer o lugar que almeja. Algo, portanto, que transfere ao sujeito a responsabilidade exclusiva de construir suas possibilidades de futuro.
Na medida em que este biombo ganha consistência, a percepção das injustiças sociais é ofuscada pela idéia de que alçar vôos maiores é algo que só depende de uma vontade individual e intransferível. O consenso construído em volta desta percepção bloqueia a indignação, turva a compreensão do cotidiano, dificulta a luta por mudanças e transforma vítimas de injustiças sociais em culpados do seu próprio destino.
As breves considerações que traçamos até o momento ajudam a entender quatro aspectos que costumam criar confusões nos debates sobre a escola:
1.      Ao contrário do que se imagina, a posse de certa bagagem cultural por parte de quem está na base da pirâmide social é tida como desnecessária e perigosa pelas relações de poder estabelecidas. Para ocupar um lugar no mercado do trabalho, é importante que o sujeito seja portador de saberes e competências compatíveis com o desempenho das suas funções e não que tenha conhecimentos que extrapolam esse âmbito. Quanto maior o número de vagas com baixa ou nenhuma qualificação, mais a bagagem cultural pode se restringir a elementos básicos o que faz parecer desnecessária parte substancial das informações adquiridas na escola.
Mas isso não é tudo. O acesso à cultura permite ter melhores condições de compreender a vida em sociedade, podendo despertar indignação e ações de rebeldia contra quem pede sacrifícios sem fim em troca de um futuro incerto. Sem uma base para ampliar a compreensão da realidade, o indivíduo não consegue vislumbrar a hipótese de que pode haver uma alternativa à ordem existente, mas tende a se resignar e a desqualificar as propostas de mudança que remam em sentido contrário aos acontecimentos. Por isso, o empobrecimento cultural da classe trabalhadora não é um efeito colateral dos novos tempos e sim uma necessidade do sistema.
2.      Não há “uma” escola que apresente nacionalmente os mesmo problemas e desafios. Há, sim, “escolas” que, em suas semelhanças, escondem diferenças produzidas pelas necessidades dos grupos locais de poder com base nas características da força de trabalho a ser empregada. Começamos a visualizar com clareza os vínculos que se estabelecem entre as necessidades da produção e o ambiente escolar à medida que respondemos às perguntas que seguem:
a.       De que competências e saberes precisam as atividades econômicas locais e os investimentos a serem introduzidos no futuro próximo?
b.      A que instituições é entregue a tarefa de preparar a força de trabalho a ser empregada?
c.       Quanto custa e em que prazos é possível formar localmente empregados à altura das demandas do mercado? Será que para as empresas não é mais barato e confiável trazer de fora quem ocupará as funções que exigem qualificações ou competências específicas?
d.      Como as demandas da economia se relacionam, ou entram em choque, com a classe política que administra as instituições locais?
e.       De que forma as mudanças na base econômica da sociedade alteram o senso comum da população a fim de ganhar seu apoio às necessidades por elas introduzidas?
f.       Em que direção os interesses da elite estão conduzindo a relação com a escola?
Como estamos dizendo desde o início, trata-se de inverter o ponto de partida da análise do fracasso escolar. É na produção da riqueza, e não fora dela, que encontramos as explicações para a defasagem entre os discursos oficiais sobre a educação e a realidade com a qual nos deparamos diariamente nas instituições de ensino.
3.      Em geral, o que os empresários chamam de “bom trabalhador” é aquele que tem olho vivo, mão ágil e aptidões que atendem às exigências do posto para o qual foi contratado. A depender do setor da economia, estarão incluídas, em maior ou menor grau, certa capacidade de disciplinar o próprio corpo, resistência física, determinado nível de concentração, saberes específicos, flexibilidade para ampliar o rol de tarefas, obediência e confiabilidade. Os patrões sempre desejam alguém que seja politicamente dócil e economicamente rentável. Melhor ainda se, a depender do cargo e da filosofia da empresa, o funcionário for assumindo as demandas do trabalho como metas pessoais ou cultive, ao menos, sentimentos de gratidão e sagrado temor em quem paga o seu salário. Definido o patamar de integração desejado, é desenvolvido um conjunto de meios que visa elevar a capacidade de o empregado se adaptar às demandas da produção, aguentar sempre um pouco mais e acreditar que o sofrimento experimentado permite superar seus limites ou não passa de algo próprio do ofício. Ao injetar ora uma sensação de autorrealização, ora um medo que paralisa o descontentamento, consegue-se dissuadir os funcionários da tentação de utilizar seu conhecimento para dar vida a expressões de rebeldia.
4.      A história revela que a tarefa qualificada de hoje terá o conhecimento dos que a desempenham incorporado aos equipamentos que nascerão da evolução tecnológica, ao mesmo tempo em que as próprias inovações criarão funções para as quais costuma haver uma momentânea escassez de profissionais. O tecelão do século XIX, por exemplo, foi substituído pelo tear de lançadeira operado por mulheres e crianças que nunca haviam pisado numa fábrica, mas a manutenção do equipamento demandava profissionais não imediatamente disponíveis. O torneiro mecânico dos anos 70 e 80 vê seu saber inserido em máquinas automatizadas cuja operacionalização pode ser feita por pessoas minimamente treinadas, mas demanda programadores preparados, não necessariamente próximos ao local onde o equipamento foi instalado. Do mesmo modo, a recente implantação no Brasil de empresas que atuam na área de micro-eletrônica apresenta um volume enorme de funções com baixas competências, mas evidencia a falta de engenheiros especializados na produção de processadores, razão pela qual devem trazer profissionais do exterior a custos maiores até que os locais sejam considerados aptos a assumirem seus postos.
Nesta altura, podemos facilmente perceber que, em cada país, região e período histórico, a adaptação dos conhecimentos veiculados na escola guarda estreita ligação com a produção instalada e as competências exigidas pelo nível tecnológico dos investimentos locais. De consequência, não há como os ensinos fundamental, médio, superior ou profissionalizante, se anteciparem a este processo na medida em que dependem de suas definições para alterarem currículos e introduzirem saberes que atendam às novas demandas do mercado. E isso, por sinal, só pode ser feito com certo atraso.
Se isso for verdade, temos agora a obrigação de passar do geral ao particular e de verificar nele se o que afirmamos encontra a devida correspondência em nosso país.


         2. Duas décadas de reestruturação produtiva no Brasil.

            Numa rápida descrição dos acontecimentos, podemos dizer que os anos 90 são marcados por uma pesada desestruturação das relações de trabalho, pela legitimação dos contratos por tempo determinado, da terceirização e da renda variável que contribuem fortemente para a diminuição dos salários pagos e, obviamente, para o encolhimento do poder de compra. No início do novo século, mais da metade da População Economicamente Ativa (PEA) mergulha na informalidade. As taxas de desemprego dobram e apontam períodos cada vez mais longos para os trabalhadores conseguirem um novo emprego. Os números são tão assustadores que os governantes adéquam os critérios utilizados nas estatísticas oficiais a fim de ocultar esta situação avassaladora.
Vários fatores macroeconômicos levam esta realidade a ganhar consistência. Entre eles, os mais visíveis deitam raízes nas baixas taxas de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), na desregulada abertura comercial e financeira da economia, no aumento da PEA, na redução da participação da indústria no PIB, nas privatizações e na queda dos investimentos. Enfim, uma reestruturação produtiva cujo motor principal não é a ampliação da base tecnológica e sim a precarização do trabalho.
A contenção do descontentamento gerado pelas mudanças em curso se baseia num ideário que alardeia a chegada de um mundo onde ninguém seria empregado (daí o estímulo a cada um montar o próprio negócio) e na ideia pela qual as medidas de flexibilização e precarização gerariam novos e abundantes empregos. Nada mais do que dois engodos. De fato, não há quem explique como todos podem ser patrões num mundo sem empregados. Por outro lado, a redução dos custos do trabalho é apontada como necessária para recuperar o nível de emprego quando, na verdade, contrata-se sempre alguém porque há trabalho a ser feito e não, simplesmente, porque o seu salário está baixo.
Passada a euforia do Plano Real, a redução dos salários, fruto da crescente precarização, tem efeito contrário à modernização da produção na medida em que amplia a vida útil de equipamentos obsoletos e faz com que, na maioria das circunstâncias, o trabalho vivo seja mais flexível e lucrativo. Robôs e equipamentos eletrônicos destinados às indústrias, por exemplo, são rentáveis apenas quando de uma utilização média elevada, o que pressupõe um mercado consumidor em expansão, algo, portanto, na contramão do corte nos salários. Nas próprias montadoras, aposta-se mais na “mão humana” à exceção dos setores de pintura e armação de carrocerias onde os robôs são instalados para atender padrões de acabamento internacionalmente aceitos, o que leva sua introdução no Brasil a acontecer de forma lenta e seletiva. Por outro lado, sempre devido aos baixos salários, é mais barato contratar um batalhão de pessoas para cavar o alicerce de um prédio de quatro andares, com a largura e a profundidade necessárias, do que uma escavadeira que, além do elevado custo da hora de trabalho, abre uma vala cujo gasto adicional de materiais não compensa a rapidez com a qual conclui o serviço.
Paralelamente a isso, a chegada de computadores com programas mais “amigáveis” elimina qualificações e competências que, no período anterior, obrigavam as empresas a contratarem profissionais com salários maiores. O saber do analista de crédito, por exemplo, integra agora um software que pode ser operado por um simples digitador sem nenhuma responsabilidade na concessão dos valores solicitados pelos clientes. Inseridos os dados, é a máquina que se encarrega de tomar as decisões que antes exigiam certo conhecimento e capacitação no ramo.
Na esteira desses acontecimentos, entre 1998 e 2003, assistimos à implantação local de políticas que têm profundas consequências para o ensino. É em 1998 que, por exemplo, no Estado de São Paulo, se institui a progressão continuada e uma reformulação na organização das escolas estaduais que eleva a quantidade de alunos por sala, reduz o tempo de aula e, em nome da eficiência, encolhe o número de escolas. Em seu conjunto, estas medidas dificultam o aprendizado e pioram o quadro das instituições públicas de ensino num estado considerado a locomotiva econômica do país. Apesar disso, a relação da escola com as características do trabalho, próprias daquele momento, não sofre prejuízos, à medida que a maioria das vagas pede uma leitura capaz de identificar corretamente o letreiro do ônibus, a capacidade de resolver contas simples e saberes práticos acessíveis.
Enquanto isso, as empresas passam a exigir o ensino fundamental completo ou o médio para postos que, até o período anterior, nada pediam em termos de escolaridade. Apesar de o rol de tarefas específicas se manter inalterado, há uma mudança qualitativa no efeito que esta exigência produz nas pessoas. Inúmeros candidatos aos empregos disponíveis se culpam pelo desemprego em função da falta de estudos. A constatação é de que há vagas, mas falta o canudo que permite ocupá-las. É assim que, nas ruas das cidades, começam a proliferar faixas oferecendo cursos que condensam em alguns semestres o conteúdo do ensino fundamental e médio. Se é verdade que, como diz o senso comum, sempre se aproveita alguma coisa do estudo feito, por fraco que seja, é mais verdade ainda que o centro das atenções não é o saber e sim o canudo que serve de passaporte para a disputa de uma vaga.
Nas chamadas “ilhas de excelência” da produção industrial, a introdução de um punhado de robôs (450 ao todo, em 1997)[1] faz com que seus operadores, escassos naquele momento, tenham acesso a salários e benefícios mais elevados e passem por processos de treinamento custeados pelas empresas. Na medida em que não há como a educação formal ensinar a operação de máquinas que funcionam com base em softwares adaptados às especificidades da produção, esta tarefa só pode ser assumida por quem as introduz nos processos de trabalho.
Em termos de competências básicas, porém, a seleção destes profissionais exige o segundo grau completo por esperar que a passagem pelo ensino médio e, eventualmente, por cursos específicos, garanta quatro habilidades imprescindíveis na operação de um robô:
1.      Leitura e entendimento de texto em tempos compatíveis com a velocidade pela qual a operacionalização do equipamento é visualizada na tela do computador;
2.      Escrever sem cometer erros de ortografias, pois os programas não reconhecem comandos digitados sem a sequência de letras neles inserida;
3.      Conhecimento e manuseio de um teclado, de preferência acompanhado por uma digitação que use todos os dedos;
4.      Noções elementares de informática, aprimoradas durante o treinamento na empresa, para distinguir se os problemas detectados são de software ou de hardware.
Estamos falando, portanto, de algo que, em grande parte, a escola pública já deveria estar conseguindo, mas que, na dificuldade de encontrar candidatos à altura destas demandas, leva os empresários a contratarem pessoas vindas de instituições privadas de ensino. Em ambos os casos, a admissão não se dá automaticamente, mas passa por uma seleção rigorosa, um período variável de testes e outro de longo aprendizado. Afinal, ninguém entrega uma máquina que custa milhões a um “moleque” que acaba de sair do ensino médio pelo simples fato de apresentar as competências solicitadas. O que as empresas de ponta precisam provar é a confiabilidade política e econômica do sujeito. E isso leva tempo.
Coincidência ou não, é neste período que nas bancas de jornal das grandes cidades aparecem coletâneas de romances escritos pelos mestres da literatura universal, vendidas a baixo preço, com direito a capa dura e brindes que convidam à compra até por curiosidade ou, na pior das hipóteses, para enfeitar a estante da sala. Ao contrário do que ocorria em períodos anteriores, a mídia sustenta este processo com reportagens, entrevistas, lançamentos de coleções, divulgação de eventos literários abertos ao grande público e uma série de intervenções que apontam a leitura como porta de acesso a um mercado de trabalho em mudança.
Nesta fase, as queixas relativas à “falta de mão de obra” se concentram nas áreas de manutenção dos equipamentos informatizados e nos setores de tecnologia de ponta, pois, como já dissemos, a inovação traz a necessidade de qualificações não imediatamente disponíveis, pelo menos não na abundância desejada para reduzir os ordenados pagos.
O grosso dos assalariados, porém, continua na precariedade, vendo suas condições de vida e de trabalho se degradarem e com bem poucas perspectivas de melhora no futuro imediato. O censo do IBGE realizado no ano 2000 reflete em seus dados a somatória entre o impacto positivo trazido pelo controle da inflação e a precarização do mercado de trabalho que percorre a década. Pela renda domiciliar per capita, constatamos a realidade que segue: [2]

Renda domiciliar per capita

Porcentagem das famílias

Até 1 salário mínimo
54,9%
Mais de 1 a 2 salários mínimos
21,87%
Mais de 2 a 3 salários mínimos
8,27%
Mais de 3 a 5 salários mínimos
7%
Acima de 5 salários mínimos
7,96%

            Os números indicam que mais da metade da população brasileira vive em famílias que, de acordo com os critérios do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, se situam abaixo da linha da pobreza, parte das quais em condições de vida que marcam o fim do sonho de encontrar no trabalho a via de acesso à ascensão social.
            A partir de 2004, a economia nacional volta a crescer em ritmo mais intenso. De acordo com o Cadastro Geral de Emprego e Desemprego (CAGED) do Ministério do Trabalho e Emprego, entre 2001 e 2010 são criadas 13.360.000 novas vagas, o salário mínimo ganha poder de compra por incorporar, além da inflação, o índice de crescimento do país no ano anterior e a base da pirâmide social conta também com novas possibilidades de crédito. Graças aos programas governamentais há mais gente na escola e tendo acesso à universidade, o que aumenta o número médio de anos de estudo dos trabalhadores acima dos 25 anos de idade dos 5,6 em 2000 para 7,2 anos em 2011[3].
No final da década, a redução do desemprego ganha impulso também em função do menor crescimento percentual da PEA em relação ao do aumento da ocupação o que, teoricamente, deveria generalizar uma elevação de todos os salários pagos. Mas, apesar dos aspectos quantitativos ampliarem o mercado consumidor e projetarem uma situação favorável, as transformações em andamento não revertem o nível de precarização do trabalho alcançado nos anos 90.
Prova disso é que, entre 2000 e 2010, o PIB do país cresce 40,34%, o número de salários pagos acompanha o crescimento econômico, mas sua participação no PIB aumenta apenas 9,03%. De acordo com o IBGE, se, no ano 2000, os salários representam 32,1% da riqueza nacional, em 2010, esta porcentagem chega a 35,2%, o mesmo nível registrado em 1995, primeiro ano após a implantação do Plano Real.
Isso é possível porque os empresários ampliam a oferta de vagas, mas diminuem os salários pagos. Esta situação se reflete na renda domiciliar per capita levantada pelo Censo de 2010: [4]

Renda domiciliar per capita

Porcentagem das famílias

Até 1 salário mínimo
60,57%
Mais de 1 a 2 salários mínimos
20,33%
Mais de 2 a 3 salários mínimos
7,01%
Mais de 3 a 5 salários mínimos
5,68%
Acima de 5 salários mínimos
6,41%

            Os dados indicam que temos um aumento das famílias cuja renda per capita é de até um salário mínimo e uma queda percentual em todas as outras faixas quando comparadas ao que havia sido constatado pelo recenseamento anterior.
Esta realidade se deve, principalmente, a quatro fatores simultâneos:
1.      O aumento real do salário mínimo que, entre 2002 e 2011, é de 57%, ao passo que o do salário médio do trabalho principal das pessoas com carteira assinada no setor privado não passa de 8% (o que faz cair a diferença entre os dois níveis de 4,2 salários mínimos em 2002 para 2,96 salários mínimos em 2011);
2.      O progressivo crescimento da terceirização, cuja remuneração média é 27,1% menor do que a dos funcionários diretamente contratados pelas empresas;
3.      Uma rotatividade média de 48,53% ao ano no período considerado;
4.      O fato de, no mesmo espaço de tempo, o ordenado dos admitidos representar, em média, 88,3% do vencimento dos demitidos.[5]
O processo que descrevemos explica também porque em igualdade de idade, condições pessoais e demográficas, tipo de atividade econômica, em empresas de tamanhos semelhantes e em regiões geográficas e condições de trabalho compatíveis, de 2002 a 2011, assistimos à redução percentual da diferença entre a renda média recebida pelos empregados de um determinado nível de instrução em relação aos do grau imediatamente inferior. A tabela que segue revela as mudanças que ocorrem entre 2002 e 2011: [6]

Grau de instrução em relação ao nível inferior
Diferença percentual entre a média salarial em 2002
Diferença percentual entre a média salarial em 2011
Ensino fundamental completo sobre ensino fundamental incompleto
13%
9%
Ensino médio completo sobre ensino fundamental completo
47%
33%
Ensino superior completo sobre ensino médio completo
140%
105%
Pós-graduação sobre ensino superior completo
214%
180%

            Mas há uma pergunta que não quer calar. Em 2010, quantas são as vagas que demandam competências próprias dos níveis de escolaridade mais elevados? Mais uma vez, o último Censo nos fornece os dados essenciais de acordo com a discriminação que segue: [7]

Grau de instrução
Número de pessoas
Porcentagem da PEA
Sem instrução e fundamental incompleto
35.752.700
38,24%
Fundamental completo e médio incompleto
17.119.662
18,31%
Médio completo e superior incompleto
28.870.344
30,87%
Superior completo
11.316.075
12,1%
Não determinado
445.879
0,48%

Os números mostram que, no universo de 93.504.659 pessoas da PEA, nada menos do que 87,42% dos empregos formais e informais são ocupados por indivíduos cujo grau de instrução culmina no ensino superior incompleto, deixando em 12,1% o número das vagas destinadas aos níveis superiores. Em outras palavras, quase 90% da base econômica da sociedade continua não precisando de pessoas cujas competências sejam adquiridas ao completar cursos universitários.
A surpresa fica por conta dos dados de 2011 e 2012 relativos à criação/supressão de vagas por faixa salarial no que é o saldo positivo final de postos criados em cada ano. De acordo com o estudo da LCA Consultores Associados, cuja base de cálculo é dada pelas vagas criadas no ano em curso e comunicadas ao CAGED no prazo correto, constatamos que: [8]

Faixa Salarial

Vagas criadas em 2011

Vagas criadas em 2012

Até meio Salário Mínimo
45,3 mil
38,3 mil
De meio a 1 Salário Mínimo
524 mil
369,7 mil
De 1 a 1,5 Salário Mínimo
1.224,7 mil
888,7 mil
De 1,5 a 2 Salários Mínimos
117,8 mil
38,4 mil
De 2 a 3 Salários Mínimos
- 139,6 mil
- 210,2 mil
De 3 a 4 Salários Mínimos
- 97,6 mil
- 105,8 mil
De 4 a 5 Salários Mínimos
- 37,2 mil
- 34,3 mil
De 5 a 7 Salários Mínimos
- 38,6 mil
- 52,9 mil
De 7 a 10 Salários Mínimos
- 17,2 mil
- 22,6 mil
De 10 a 15 Salários Mínimos
- 8,2 mil
- 18,9 mil
De 15 a 20 Salários Mínimos
- 7,2 mil
- 8,4 mil
Mais de 20 Salários Mínimos
-7,5 mil
- 11,3 mil
Total de vagas criadas
1,566 mil
868,2 mil

Contrariando as afirmações da mídia, os números provam de forma inequívoca a redução das vagas que pagam melhores salários em função das qualificações exigidas, e o aumento dos postos cuja remuneração não supera os dois salários mínimos.
Esta mesma realidade pode ser verificada nos relatórios do CAGED. Em 2012, dos 1.301.842 novos empregos, que incluem as vagas criadas em 2011, mas comunicadas fora do prazo e incorporadas ao ano seguinte, percebemos que o setor de serviços ocupa a primeira posição com 666.160 postos, seguido por comércio, com 372.368, construção civil, com 149.290, indústria, com 86.406, extração mineral, com 10.928, e administração pública com 1.491.[9] Considerando que, historicamente, o comércio e o setor de serviços são conhecidos pelos salários reduzidos e a admissão de pessoas com baixa qualificação, e que algo semelhante ocorre na indústria e na construção civil, temos um quadro nada animador em termos de incentivos à melhora dos ensinos fundamental e médio: [10]
 
Grau de instrução
Salário Médio de Admissão
Aumento Real 2012/2011
Analfabetos
R$ 763,36
8,74%
Até 5º Incompleto
R$ 827,89
6,68%
5º Completo Fundamental
R$ 856,84
5,97%
Fundamental Completo
R$ 889,77
5,86%
Médio Incompleto
R$ 806,24
5,03%
Médio Completo
R$ 930,36
4,79%
Superior Incompleto
R$ 1196,85
0,55%
Superior Completo
R$ 2577,66
0,31%
 
      O fato de a maior parte da demanda de trabalhadores ocorrer nas funções menos qualificadas é aqui comprovado pelo índice de aumento médio real dos salários de admissão de acordo com o grau de instrução dos contratados, já descontada a inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor. Estes salários recebem porcentagens maiores de aumento real por combinarem a proximidade de seus vencimentos com o valor do salário mínimo e os efeitos da própria demanda sobre os níveis de oferta disponíveis. Do mesmo modo, o reduzido aumento real nos salários de admissão dos que têm o superior incompleto e completo reflete a redução do número de postos disponíveis e a maior oferta de trabalhadores com esses graus de escolaridade.
      Isolando o aumento médio dos salários que, em 2012, foi de 4,1%, do saldo de vagas por faixa salarial e do grau de instrução, temos a impressão de que as coisas estão melhorando para todos e que o país caminha realmente em direção a uma demanda consistente de pessoas qualificadas. Mas, quando introduzimos as variáveis apresentadas nas tabelas acima, percebemos que há sim um aumento das vagas disponíveis, mas nas funções que pressupõem saberes não superiores aos adquiridos até o ensino médio completo. Trata-se de uma realidade que marca presença em 2011 e 2012 e que, como veremos, veio para ficar.


3. Há vagas, mas não trabalhadores para ocupá-las?

Sempre que a mídia toca nesse assunto, temos a impressão de que se trata de um problema típico da força de trabalho brasileira. Os dados divulgados na imprensa mundial, porém, mostram um panorama diferente.
Por exemplo, de acordo com o Informe do Instituto de Economia da Alemanha, publicado pelo jornal Die Welt em 03 de agosto de 2013, existiriam no país 119 profissões muito requisitadas e para as quais não há candidatos. Neste numero estariam incluídos cargos qualificados, como os de especialistas em tecnologia da informação, profissionais de matemática, cientistas e engenheiros, e de baixa qualificação como encanadores, pintores, pedreiros, camareiros e auxiliares de enfermagem.
À medida que o crescimento populacional do país é negativo (e não porque na Alemanha faltem institutos de ensino à altura das necessidades), as vagas do primeiro grupo que permanecem em aberto são preenchidas com o trabalho de imigrantes vindos de países como Espanha, Portugal e Itália. No extremo oposto, além da diminuição da população economicamente ativa, temos a recusa do alemão médio de se dedicar a trabalhos manuais pesados e de baixa qualificação, cujos postos, em geral, são ocupados por pessoas oriundas de países não europeus que, pressionadas pelas condições de vida na terra natal, estão dispostas a se submeterem a qualquer sacrifício.[11]
No Brasil, 25% das permissões de trabalho para estrangeiros são vinculadas à indústria petrolífera num leque de 15 atividades econômicas para as quais o país importa profissionais. Aparentemente, esse dado contradiz a premissa pela qual a presença de uma empresa de ponta em território nacional abre caminhos para a formação local de trabalhadores em cursos universitários e profissionalizantes que atendam às suas demandas. E não é pra menos. De acordo com a Coordenação Geral de Imigração (CGI), vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego, entre 2010 e 2012, teriam entrado no Brasil nada menos do que 49.801 profissionais de países como Grã Bretanha, Estados Unidos, Noruega, Holanda e França para atuarem no setor de petróleo e gás. O número assusta, mas, como sempre, deve ser relacionado à realidade do setor.
A descoberta do pré-sal tem introduzido a necessidade de desenvolver tecnologia para perfurar em camadas de sal a mais de 2.000 metros de profundidade, a urgência de aprimorar os mecanismos de pesquisas de novos campos petrolíferos, de reativar os estaleiros locais para a construção e manutenção de plataformas, sistemas de dutos, navios para a prospecção e o transporte de petróleo. Não que faltem técnicos e especialistas no Brasil, mas o fato de estes setores terem sido desativados ao longo dos anos 90 (quando os governos preferiam importar no lugar de produzir no país) soma-se à entrada das multinacionais na disputa pelos novos campos petrolíferos e à demanda em função dos próprios investimentos da Petrobrás. Esses fatores ampliam a defasagem entre as possibilidades de formar força de trabalho brasileira e os tempos do capital nacional e internacional que tem pressa em viabilizar os novos poços. Por si só, o número das permissões concedidas pelo CGI, ano a ano, comprovam quanto acabamos de afirmar:

Ano
Número de permissões para estrangeiros
2006
2.645
2007
4.249
2008
5.877
2009
8.721
2010
9.910
2011
23.172
2012
16.719

Exceções à parte, nossas reflexões seriam incompletas sem um olhar mais atento sobre o que, na realidade do país, serve de base às afirmações da mídia.
O primeiro aspecto que queremos resgatar é a ausência crônica de investimentos empresariais na capacitação de pessoas para demandas oriundas da especificidade de seus empreendimentos. Este vácuo, justificado pela ideia de que cabe ao empregado custear a formação que proporciona sua admissão ao cargo, faz com que só uma pequena minoria de empregadores enverede pelo caminho da qualificação no trabalho. Capacitar pessoas exige um processo lento, caro e de retorno incerto, na medida em que o funcionário preparado por uma empresa pode ser “roubado” por um concorrente que paga melhor sem nada ter investido em sua formação. Por isso, a ampla maioria dos patrões busca sempre contratar alguém já pronto e, sobretudo, “barato”. O problema é que este contingente começa a escassear em função da elevação da demanda, do baixo crescimento da população economicamente ativa e do aumento real do salário mínimo para as profissões com baixa qualificação.
Alguns exemplos ajudam a visualizar os gargalos e as saídas com os quais os detentores do poder se deparam na hora de encontrar empregados com as características desejadas. Um deles salta aos olhos sempre que se veicula a ideia de que há vagas difíceis de serem preenchidas. Uma delas pode muito bem ser a de pintor de tanques e plataformas da Petrobrás. À primeira vista, parece que encontrar alguém com o curso de pintor industrial não deve ser tão difícil assim e, de fato, não é. Esta, porém, é apenas a primeira e a mais simples das exigências que devem constar do currículo do candidato.
Além de saber exercer a profissão, o pintor deve ter experiência e capacitação comprovadas para lidar com as tintas de alta resistência utilizadas pela empresa, o que é essencial para garantir o padrão de acabamento exigido. Por si só, esta condição consegue eliminar a maioria dos possíveis ocupantes da vaga já que os cursos teóricos no chamado “Padrão Petrobrás” existem, mas, obviamente, não oferecem a experiência solicitada. Último, mas não menos importante, pede-se que o interessado comprove que possui noções de alpinismo, pois boa parte do serviço será executada nas alturas com o funcionário pendurado em cordas, o que exige uma série de outros requisitos, como o não sofrer de vertigens e tonturas, por exemplo. Tudo isso para um contrato por tempo determinado a ser assinado com uma empreiteira á medida que, uma vez realizada a pintura dos equipamentos, durante anos, não haverá mais necessidade daquele trabalhador no local indicado pela Petrobrás. Quando verificamos as condições exigidas, a vaga estava aberta há 37 dias, sem encontrar candidato.[12]
            Esta situação instigante nos leva a perguntar que tipo de competências os ensinos fundamental, médio e superior poderiam acrescentar em seus currículos para ir ao encontro de uma demanda tão específica. Por muito que nos esforcemos, dificilmente, podemos pensar em algo que se aproxime dos conteúdos do curso profissionalizante de pintor industrial nas aulas de química ou de alpinismo nas de educação física... Certamente, o candidato deve aprimorar sua capacidade de lidar com cálculos de porcentagens (o preparo das tintas não pode ser feito na base do “olhómetro”, mas exige elevado grau de precisão), de leitura e entendimento de texto para a correta interpretação dos rótulos dos produtos, além de ter um físico sem os efeitos da vida sedentária, mas nada mais. O jeito, portanto, é esperar alguém aparecer, depois que a equipe em que trabalha tenha acabado de pintar tanques ou plataformas em outra localidade onde a Petrobrás tem uma base de operações. Pode parecer brincadeira, mas, de fato, é isso que vem acontecendo.
            O segundo exemplo diz respeito à preparação dos hotéis para a Copa do Mundo de futebol de 2014 e as Olimpíadas de 2016. A realidade do setor descrita no recém-divulgado estudo do DIEESE confirma as tendências gerais do mercado de trabalho brasileiro. Concretamente, estamos falando de uma atividade na qual 59,8% dos empregados estão na faixa de renda até 1,5 salário mínimo sendo que outros 21,4% recebem de 1,5 a 2 salários mínimos, 11,8% de 2 a 3 salários mínimos e apenas 6,5% do efetivo empregado ganha acima disso.
Como não poderia deixar de ser, o nível de escolaridade reflete o baixo grau de qualificação das vagas do setor ao apontar que 16,9% dos empregados não completaram o ensino fundamental, 20,6% têm o fundamental completo, 12% o médio incompleto, 43,2% o médio completo e apenas 7,2% estão cursando ou já terminaram o ensino superior.[13]
Quando comparamos as características das vagas oferecidas com as competências próprias do da escolaridade, percebemos não haver defasagens na medida em que as eventuais especificidades da função só podem ser atendidas por cursos profissionalizantes ou por sessões de treinamento no padrão de qualidade exigido por cada hotel de acordo com a clientela atendida. Contudo, sabendo que também os empregados dos cargos que não exigem qualificação, em algum momento, podem entrar em contato com hóspedes estrangeiros, como irão se comunicar com eles se, na ampla maioria dos casos, o conhecimento do inglês, por exemplo, é inexistente?
Longe de uma capacitação à altura do desafio de fazer dos eventos esportivos um cartão postal para o futuro, os proprietários de hotéis exigem certa fluência de recepcionistas, telefonistas e do pessoal que deve resolver os problemas mais delicados do dia-a-dia. Para os demais, estão sendo preparadas aulas estilo “fast food” em parceria com escolas de idiomas. A “qualificação em línguas estrangeiras” vai ocorrer em módulos de conversação de 45 horas/aula onde cada nível de atendimento será instruído no que basta para encaminhar o hóspede a quem pode entender seus pedidos. É claro que, por exemplo, serão dispensados deste aprendizado os empregados da lavanderia, ao passo que roupeiras e arrumadeiras não passarão do primeiro módulo cujas frases se juntarão à mímica na hora de estabelecer curtos diálogos com quem vier a solicitar sua atenção.[14] Longe de uma preparação que contribua para a qualificação e a efetiva capacitação dos funcionários, estamos falando de um quebra-galho, realizado às pressas para atender um pico de demanda em função do qual só um punhado de empregados poderá obter benefícios para sua futura inserção no setor.
            O terceiro caso nos é fornecido pela construção civil que vem passando por um período de expansão de suas atividades e cujos empresários se queixam das dificuldades em encontrar pedreiros e ajudantes capacitados. Acostumadas a encontrarem pessoas que se contentavam com qualquer coisa, as empreiteiras não se conformam com a escassez de trabalhadores dispostos a se deixarem esfolar em serviços esgotantes e mal-remunerados.
Pedreiro bom existe, mas não é barato. O problema para os donos do poder é de que um profissional de mão cheia trabalha facilmente por conta própria, consegue, em média, uma renda líquida correspondente ao dobro do salário das empreiteiras e contrata ajudantes à altura de suas necessidades que, melhor remunerados, não têm porque procurar emprego em canteiros de obra. Se a esta realidade somamos a falta de uma política de treinamento e qualificação a ser levada adiante nas empresas, a redução do número de migrantes que se dirigem aos grandes centros e o fato de as pessoas com maior escolaridade procurarem empregos que pagam salários semelhantes para trabalhos menos pesados, percebemos que a falta de pessoal encontra aqui explicações plausíveis para a quase totalidade dos casos. É assim que, nos canteiros, é cada vez mais comum encontrar pedreiros recém-formados em cursos rápidos de profissionalização que levantam paredes sob o olhar atento dos mestres de obra. De imediato, o fato de a remuneração não ultrapassar os pisos negociados com os sindicatos não é visto como um grande problema à medida que pedreiros e ajudantes buscam ganhar experiência rumo a um trabalho por conta própria que proporcione ganhos maiores no futuro.
Além disso, já vínhamos sinalizando o fato de que, na década de 90, a precarização do emprego e a piora nas condições de vida das populações na base da pirâmide social levavam à perda da perspectiva pela qual o trabalho seria o caminho natural para subir na vida. Sabendo disso, alguns intelectuais estimam em 20 milhões de pessoas o contingente dos que não servem nem para serem explorados na medida em que nunca adquiriram as disposições elementares da disciplina do trabalho ou não vêem nele uma saída para a própria condição social.[15]
É a este grupo que se dirigem os esforços de diferentes níveis de governo em proporcionar cursos profissionalizantes de curta duração para atividades manuais simples, requisitadas pelo mercado. Até abril do ano em curso, portanto em um ano e meio de existência, o PRONATEC (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego do Ministério da Educação) já formou 2,8 milhões de jovens e trabalhadores e atingiu a marca de 380.000 matrículas entre pessoas cadastradas no Brasil sem Miséria. Trata-se, sem dúvida, de uma tentativa válida de transformar o contingente da População Economicamente Ativa desocupada e inapta em exército industrial de reserva, capaz de assumir os postos nas funções de baixa qualificação. Mas este esforço que procura reparar os estragos produzidos pelos empresários nas décadas anteriores se depara com problemas que não serão resolvidos pelos cursos oferecidos.
A título de exemplo, vamos considerar um programa concreto baseado na parceria entre poder público e iniciativa privada que, a princípio, soma os recursos para a qualificação com a demanda real do mercado de trabalho. No dia 25 de março de 2013, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e a Prefeitura do município de São Paulo, assinaram um convênio para, aproveitando os recursos do PRONATEC, oferecer cursos de almoxarifes, confeccionadores de bolsas e acessórios, mecânicos de motores a diesel, mecânicos de bicicleta, padeiros, pedreiros de alvenaria, eletricistas para instalações em prédios, encanadores, pintores, vidraceiros e aplicadores de revestimento cerâmico, entre outras profissões.
O objetivo, até o final de 2013, é o de formar cerca de 2000 pessoas em situação de rua para possibilitar sua inserção no mercado de trabalho. Para isso, está sendo organizada uma rede de apoio que vai fornecer transporte, alimentação e uma ajuda em dinheiro vinculada à frequência nas aulas. A escolha dos cursos não parte das características e das dificuldades das pessoas em situação de rua, cujo sofrimento costuma levar à ausência de qualquer disciplina de horário e de trabalho, além de níveis diferenciados de degradação humana, mas tão somente da demanda de vagas.
Nunca é demais lembrar que sem um processo de adaptação do próprio corpo aos aspectos básicos do trabalho, o exercício de qualquer profissão se torna praticamente impossível. Por simples e desqualificada que seja a vaga oferecida, seu preenchimento não é inviabilizado pela índole ou o caráter dos que vivem na rua e da rua, mas, fundamentalmente, pelo fato de que a condição de moradores de rua impede, objetivamente, qualquer tipo de disciplina, planejamento e projeção de futuro. As pessoas nesta situação costumam se focar em ações que proporcionam nada mais do que a sobrevivência física imediata.
Para termos uma idéia das implicações que isso representa, basta pensar no fato de que muitos moradores de rua dormem de dia e permanecem acordados a maior parte da noite para evitar a ação de quem vê em sua eliminação física o fim de um incômodo para os comerciantes e as “pessoas de bem”. Manter-se vivo nas ruas de São Paulo demanda a capacidade de assumir a incerteza como companheira de todas as horas, de procurar comida e abrigo contrariando todas as regras, enfim, de aprender a sobreviver numa realidade onde o acaso, a sorte ou o azar de cada dia são características que impedem qualquer previsão e tornam sem sentido planejar ações e horários.
A humilhação e a sensação de não ter direito a ter direitos, que constitui seu andar pela cidade, evidenciam que, mais do que uma preocupação com a lógica e as necessidades do mercado, o seu resgate deve trilhar caminhos mais intricados. Oferecer cursos profissionalizantes pode parecer uma boa saída para patrões supostamente filantrópicos e para os programas de inclusão social do poder público. O problema é que partir do afã do mercado em ter trabalhadores baratos implica em passar por cima das características e realidades dos sujeitos aos quais se destinam os cursos oferecidos, o que abre caminhos para o fracasso do programa.
No que diz respeito à formação profissionalizante proporcionada pelo SENAI, não vemos nenhuma contradição com nossas afirmações anteriores. O atraso na adaptação curricular dos ensinos fundamental e médio às demandas da produção encontra aqui um correspondente à altura no mundo da preparação específica para o trabalho. É praxe das Federações das Indústrias abrirem unidades de aprendizagem nos estados de acordo com suas necessidades e reestruturarem as existentes sempre e quando há certo descompasso entre os investimentos locais e os conteúdos que servem de base à formação de novos profissionais. Esta defasagem, aliada às características próprias do mercado de trabalho em cada região, faz com que os candidatos a uma vaga dificilmente saiam com um emprego ao alcance das mãos em empresas de peso.
O fato de terem cursado, e pago de próprio bolso, o que visa lhes proporcionar conhecimentos teóricos suficientes para começar, não impede que as exigências da produção os submetam a condições de experiência comprovada. Ou seja, o casamento da vaga com o candidato precisa de confiabilidade, de pré-condições, de situações capazes de comprovar que a formação assimilada, em termos técnicos, econômicos e políticos, é condizente com as necessidades do cargo. Algo, portanto, que não é imediato e pode deixar em aberto postos que demandam certa capacidade de aprender a aprender ou saberes práticos não diretamente acessíveis em cursos profissionalizantes.
            Estamos convencidos de que os exemplos acima são suficientes para não comprarmos gato por lebre e para percebermos as razões e os objetivos dos donos do poder que se disfarçam sob o que é repetido pelo senso comum e acriticamente incorporado como verdade.


         4. Famílias e alunos no olho do furacão.

            Sempre que a busca de um culpado pela má qualidade do ensino coloca as famílias no banco dos réus, o indicador de quem acusa não aponta uma instituição social genérica, e sim núcleos que vivem em condições extremamente precárias. Marginalizadas e com histórias de vida de dar arrepios, essas pessoas não têm a quem recorrer para sanar situações degradantes que tendem a se perpetuar.
            Não é de hoje que periferias e curtiços das grandes cidades abrigam problemas sociais e humanos que revelam graus diferenciados de abandono, perda de valores e de identidade cultural. Por identidade, entendemos aqui um conjunto de ideias e vivências que, enquanto patrimônio comum, orientam e disciplinam seus portadores.
            Se os migrantes vindos dos ambientes rurais nos anos 70 tinham uma identidade própria dos lugares de origem e um anseio que dava sentido aos desafios das grandes cidades, seus descendentes se distanciam a passos largos desta realidade. A vida nas metrópoles vai espoliando as pessoas de seus referenciais e destruindo as chances de construir uma identidade coletiva. A rotina nos grandes centros fortalece o anonimato, a dispersão, o isolamento, a sensação de estar sempre na corda bamba e deixa um vazio perante o qual as pessoas não sabem o que fazer. Na maioria dos casos, as incertezas do dia-a-dia são suficientes para relegar ao âmbito da saudade este elemento de disciplina e organização trazido do passado. Apesar da complexidade desses fatores e de suas diferentes manifestações históricas, há aspectos comuns que permitem evidenciar as mudanças que marcam as famílias operárias das periferias nas duas últimas décadas.
            O fluxo de migrantes que, nos anos do Milagre Econômico (1970-1975), lota os cortiços e as favelas é basicamente composto de pessoas que saem da miséria do nordeste em busca de um destino melhor a ser construído no sul e sudeste do país. A chegada das multinacionais e a multiplicação das vagas pelas obras públicas atraem centenas de milhares de seres humanos que deixam suas regiões de origem em busca de uma esperança de futuro vinculada ao trabalho.
            Para quem vivia em condições extremamente precárias, o cotidiano nas periferias não oferece diferenças significativas em termos de sofrimentos, quase sempre aliviados pela confiança cega num amanhã a ser construído sem condições materiais, mas com muita fé. Apesar dos pesares, esta realidade que transforma sonhos em pesadelos é vista como momento de passagem rumo a um emprego que permitirá juntar um pé-de-meia, reunir a família numa casa construída a duras penas, mas que possa ser chamada de “minha”.
Alcoolismo, brigas, separações de casais, roubos, assaltos e cenas de violência são parte de uma periferia em constante processo de expansão e onde faltam escolas, postos de saúde, linhas de ônibus, asfalto e outros serviços. Após 1977, a ditadura cede algumas migalhas aos movimentos reivindicatórios que nascem e se desenvolvem a partir de várias realidades, mas todos com um único objetivo: fazer com que um Estado ausente preencha parte das necessidades imediatas dos setores empobrecidos da população e não se limite a controlá-los com o peso da repressão.
Temos, portanto, uma família com todos os tipos de problemas, mas que continua vendo no trabalho o caminho natural para dar a volta por cima. Nos anos 80, esta perspectiva começa a ceder diante da inflação crescente, que corrói o salário e as poucas economias, acompanhada por uma queda sistemática da quantidade e da qualidade do emprego. Esses fatores deterioram as esperanças de futuro de quantos nasceram nas metrópoles, não vivenciaram a identidade cultural dos pais e vêem os sonhos do passado virarem pesadelo numa família que mal consegue a sobrevivência física.
O processo de democratização do país coloca em movimento vários atores sociais e, sob a pressão destes, as elites canalizam o descontentamento popular para o âmbito institucional. Mas o fim da ditadura não marca o fim da marginalização econômica que tem suas expressões mais visíveis no aumento dos moradores de rua, do número de favelas, do contingente de desempregados e das novas manifestações do crime. A desestruturação das famílias torna-se proporcional à exploração econômica que nega seus anseios de futuro e coloca em dúvida a possibilidade de os filhos conhecerem dias melhores.
Como vimos nas páginas anteriores, a década de 90 não muda esta perspectiva sombria. Apesar da redução dos fluxos migratórios ou até mesmo de sua parcial inversão, o desemprego de longa duração se torna corriqueiro e a informalidade começa a ser lida com a naturalidade de quem vê nela o único jeito de ganhar a vida. Se, nos anos anteriores, ser camelô era sinônimo de fazer um “trabalho não digno de gente”, no período seguinte ter uma barraca para vender qualquer coisa ganha status de pequeno empreendedor.
Com os processos eleitorais ao centro das atenções e a institucionalização dos fóruns de discussão, os movimentos reivindicatórios definham e suas lideranças são incorporadas a institutos, conselhos, gabinetes, entidades ou projetos que desenvolvem políticas de “enxugar gelo”. Suas ações não atuam sobre as causas dos problemas sociais, mas limitam-se a administrar a pobreza com intervenções prioritariamente assistenciais e sempre aquém do necessário.
Neste ambiente em que valores, posturas e ações dos períodos anteriores começam a se esgarçar e a desaparecer das periferias, há um crescente esforço da mídia no sentido de estimular o desejo de possuir bens de consumo como passaporte para a visibilidade social. O marketing não vende apenas produtos, vende sonhos ao alcance da mão. A compra como caminho para a felicidade é estimulada por famosos do espetáculo ou do esporte. Suas mensagens faladas, visuais ou subliminares mexem com o inconsciente coletivo, dão asas a desejos inconfessáveis e fortalecem a impressão de que é sempre possível saborear a sensação de se destacar sobre a massa.
“Ter”, e não “ser”, passa a ser visto como caminho para deixar o anonimato, adquirir uma dignidade que não depende de valores éticos e pode ser comprada em prestações mensais. Trata-se de uma distinção que não vem de práticas diárias ou de posturas que fazem a diferença em termos de mudança social ou convivência com os demais, e sim de algo que pode ser adquirido, roubado, ou copiado, mas cuja posse promete projetar o sujeito um degrau acima de seus pares.
Frequentemente impotente diante da realidade em que se encontra, o indivíduo acredita na possibilidade de transpor as barreiras da desigualdade graças a um consumo individualista e solitário. Comprar, ou deixar de comprar, não é algo indiferente nem depende de uma necessidade material a ser atendida. Trata-se de um gesto que permite transitar de um “antes” a um “depois” da aquisição como passagem de status e trampolim para a visibilidade. Aparentemente, algo que é sempre possível, fácil e rápido, não fossem os empecilhos da condição econômica.
A dinâmica que a propaganda coloca em movimento leva a uma mudança de comportamento dos pais que passam a se perceber mais como provedores de conforto material e emocional do que como educadores cujas ações, limites e valores procuram transmitir os critérios de suas escolhas e decisões. O crescimento do potencial de consumo de crianças e adolescentes baseia-se nesta mudança de papel que se fortalece na medida em que prover alguma forma de bem-estar torna-se sinônimo de presença apesar das ausências causadas pelo trabalho e a rotina diária. Some a isso a percepção de que a garotada passa horas diante da TV e entenderá porque as agências de marketing se especializam em acirrar o desejo de crianças e adolescentes.
            Numa realidade econômica que torna proibitivo o consumo além da sobrevivência, a mídia acaba despertando uma frustração que marca adolescentes e jovens das periferias e proporcionando ao crime o adubo necessário à sua expansão. Trabalhar para ganhar visibilidade social é algo impossível nas condições oferecidas pelo emprego honesto, esgotante e mal remunerado dos pais. Para quem nasce nos anos 90, cresce nas periferias e assiste às crises que atravessam a família, o projeto de ascensão social através de um trabalho digno e estável é algo que definha com o passar do tempo e começa a sair de sua perspectiva de futuro.
            Sem um referencial de valores e vivências, próprio dos migrantes das origens, perdidos numa realidade sem sentido e influenciados por pressões de todos os tipos, os jovens da periferia se vêem numa sinuca de bico: não há trabalho para todos; quando há é pesado, desqualificado e mal-remunerado; pode-se tentar sair do atoleiro com um lance de sorte, ser jogador de futebol, modelo, etc., mas isso é para bem poucos; então, só restam as alternativas que se distanciam dos objetivos familiares do passado. Na ausência de perspectivas reais de conseguir os bens almejados com um emprego honesto, os olhares se voltam às possibilidades de dinheiro fácil oferecidas pelo crime.
            Paralelamente a isso, crescem as intervenções públicas de especialistas pelos quais as crianças devem ser deixadas livres de manifestarem sua individualidade sem que os pais corrijam atitudes ou estabeleçam limites para permitir que o verdadeiro “EU”, supostamente presente em cada ser humano, possa emergir livremente. Filhos e filhas, portanto, não são mais pessoas em formação, cujas decisões e ações devem ser acompanhadas, orientadas e limitadas, o que é típico de qualquer processo educativo, mas criaturas cujas manifestações da própria índole não podem ser submetidas a restrições, sob pena de obstaculizar o que se acredita serem as autênticas manifestações do sujeito. Tudo em nome de uma individualidade que só conhece o próprio umbigo, sempre pronta a competir com tudo e com todos, de uma autoestima que exclui o “outro” do âmbito de suas preocupações e o reconhece apenas quando precisa de sua presença para satisfazer os próprios objetivos e interesses.
            Quando esta postura se soma a uma realidade econômica que enterra os projetos iniciais de futuro, o resultado costuma ser desastroso. Satisfazer os desejos dos filhos torna-se caminho para que a esperança de estabelecer um diálogo com eles e de obter sua dedicação aos estudos ganhe alguma chance de se tornar real. Ao mesmo tempo, a luta pelo emprego se individualiza e se acirra, demanda sacrifícios crescentes em nome de um amanhã que pode não vir e costuma retribuir bem abaixo do desejo de consumo.
As promessas de invisibilidade e anonimato crescem à medida que descemos em direção à base da pirâmide social, assustam jovens e adolescentes e provocam sua rejeição diante de algo que se apresenta como uma versão piorada do que viram acontecer com os pais. A fronteira que separa uma vida de trabalho duro e honesto, mas em que se passa fome, de uma na qual nada falta graças ao crime, se torna porosa. Atravessá-la é fácil e extremamente tentador.
Dos pequenos furtos ao tráfico, do roubo de carros aos assaltos e seqüestros relâmpago, tudo proporciona riscos e histórias com doses de adrenalina que se aproximam dos filmes de ação, além de carros, motos, dinheiro, mulheres, armas, visibilidade e respeito, ainda que no círculo restrito do mundo periférico onde o sujeito atua. Entrar pela porta que dá acesso a este universo significa conquistar, de maneira fácil e imediata, o que o trabalho raramente traria depois de anos de incertezas e sacrifícios e, sobretudo, a possibilidade de decretar o fim dos desejos não atendidos.
Aos poucos, o crime disputa com as famílias o sentido a ser dado à própria vida: trabalhar... pra que? Para se esfolar como os pais? Para nunca ter nada? Para ser considerado otário? Quais as vantagens de uma vida honesta? Muito trabalho, pouco salário rumo a uma velhice repleta de incertezas? Se for assim, então é melhor arriscar, aproveitar o que vier, curtir o que der, ainda que o preço seja morrer cedo. Na base da pirâmide, viver muito não faz sentido quando significa apenas prolongar os sofrimentos sem chances concretas de melhora.
Sob o peso desta realidade, as famílias com um padrão estável de organização, centradas em valores tradicionais, que, bem ou mal, marcavam presença nos anos 70-80 diminuem a olhos vistos. Em seu lugar, ganha espaço a crescente coexistência de projetos que se opõem frontalmente. O filho na droga ou no crime torna-se um forte elemento de tensão no mesmo lar onde outros membros da família buscam a sobrevivência através de um trabalho honesto.
Ter famílias destruídas ou com algum de seus integrantes com passagem pela polícia, pelo sistema carcerário ou por instituições destinadas a adolescentes infratores deixa de ser uma exceção para virar algo assustadoramente comum. A pergunta que martela a cabeça de jovens e adolescentes continua a mesma: passar necessidade, sofrendo calado numa situação de invisibilidade social, mas tentando ser honesto, ou aceitar uma vida curta, sem fome, com algumas regalias e com o gostinho da adrenalina e do poder graças ao crime?


5. Da “viração” dos pais à “vida loka” dos filhos.

            Antes que se registrasse a situação que descrevemos acima, ensinar nas escolas da periferia já não era fácil. Das carências próprias de seus moradores às estruturas deficientes, distantes do centro, imersas num clima de violência e medo, tudo sempre conspirou contra o sucesso do mais bem intencionado esforço docente.
Hoje, este desafio ganha as cores de uma batalha perdida quando professores e professoras dão como pressuposto a existência de atitudes e pré-disposições que costumam ser típicas de classes sociais com melhores condições de vida. O resultado não pode ser outro: o conteúdo e a dinâmica em sala de aula tornam-se estranhos, aparentemente inúteis e sem sentido por se distanciarem da rotina em que se movimentam pais e alunos. Assim, a ponte que o conhecimento pretende construir entre o presente de amarguras e um futuro de possíveis realizações implode por ter uma estrutura incapaz de dialogar com o ambiente em que se inserem as instituições de ensino.
Para que haja pontos de contato entre os dois mundos, o primeiro passo dos educadores não é o de se dispor a ouvir e a enxergar a vida em volta da escola com o olhar dos moradores. Trata-se de ver como eles falam do bairro, da cidade, do trabalho, de suas perspectivas de futuro e das agruras do presente para perceber como vivem e interpretam a realidade circunstante. Algo bem diferente, portanto, do que os docentes costumam conhecer a partir de fora ou pelas intervenções enviesadas da mídia que retratam as periferias como lugares violentos, assustadores, sujos e sem lei.
Para isso, faz-se necessária uma aproximação sem preconceitos, sem julgamento prévio, sem medo de sujar os pés de barro para tocar a realidade das famílias e construir um canal de comunicação que funcione como via de mão dupla. Para compreender o sofrimento humano é preciso ter empatia e disponibilidade para o outro, ouvidos atentos e uma coerência de palavras e gestos capaz de ganhar a confiança das pessoas. Sem um mínimo de sintonia com a realidade, o processo educativo corre o risco de “estar por fora”, de não fazer sentido, de não penetrar na vida em relação à qual pretende ser instrumento de transformação. Nesta ótica, o fracasso escolar não passa da ponta de um iceberg, de um pedido de socorro vindo de quem precisa aprender a se expressar e a falar de si, de um sinal de que os clichês não dão conta da realidade e mostram que seu distanciamento em relação a ela é proporcional à insistência com a qual são usados como explicações plausíveis e convincentes.
As reflexões que seguem não passam de uma janela pela qual é possível enxergar realidades que não costumam integrar o mundo e as preocupações do docente e de um convite a se deixar questionar por elas. Afinal, como e quanto realmente conhecemos do ambiente em que vivem os alunos? Em que medida a pedagogia e as estratégias adotadas em sala de aula representam uma mão estendida para caminharmos juntos rumo às mudanças que se fazem necessárias?
Para tornar concreta nossa reflexão, optamos por explicitar o significado de palavras que, no vocabulário próprio das periferias de São Paulo, resumem o contexto em que se encontram os setores empobrecidos. Sabemos que estas colocações não podem ser generalizadas, mas, apesar de seus limites, estamos convencidos de que elas cumprem o papel de provocar, questionar e dialogar com as práticas e as afirmações mais corriqueiras que ouvimos dentro e fora da sala de aula.
Não é de hoje que, para sobreviver, o povo simples aprende a “se virar”, a “dançar conforme a música”, a “dar um jeito”, a “fazer bicos”. Do desemprego de longa duração à informalidade, passando pela precarização do trabalho e dos vínculos de emprego, há uma árdua via sacra cujas estações marcam o momento em que é necessário “engolir mais um sapo”, sorrir pra não chorar, esperar como remédio para não enlouquecer. No momento, o resultado desta somatória de sensações e anseios contraditórios pode ser resumido na palavra “viração”.
Quase sempre pronunciada com o gosto amargo de quem se vê sem saídas, a viração expressa uma realidade na qual é necessário saber fazer um pouco de tudo, aproveitar oportunidades que surgem e desaparecem com a mesma velocidade, aguentar e se dispor a sacrifícios maiores. Trata-se, por exemplo, de aprender a lidar com o assassinato de um filho, com o cônjuge que perde o emprego ou resolve ir embora, com a falta de moradia, com os perigos da rua, com as tentações do tráfico e as “leis” que impõe, enfim, com um ambiente de insegurança permanente, prenhe de tensões explosivas.
Este vórtice destruidor convive com a esperança pela qual “se Deus quiser, um dia, vai mudar”, reafirmada ora como forma de se resignar, ora como saída de emergência em direção ao futuro no qual se cultiva o desejo de não ser tragado pelos acontecimentos. Na “viração” vale tudo para não enlouquecer, para levantar e começar de novo, tanto pela consciência de que é necessário continuar ou como resultado daquela cachaça que, apesar dos estragos, ajuda a esquecer de uma realidade aterradora. Uma vida, portanto, sem sossego, na qual a maré pode virar a qualquer hora, a brisa se transformar em furacão, e o que parecia firme e forte desmanchar em segundos.
Para tornar esta imagem ainda mais concreta, pense agora no cotidiano de um catador de materiais recicláveis que puxa sua carroça pra cima e pra baixo. Não é necessário ser sociólogos para ver como o que acabamos de dizer pode se concretizar em sua rotina diária. Mas, para ajudar nesta empreitada, vão aqui algumas perguntas: humanamente falando, você já se perguntou o que é viver do lixo? Quanto pesa o carrinho que o catador arrasta com dificuldade pelas movimentadas ruas da cidade? Você consegue imaginar os xingamentos dos motoristas apressados? As humilhações das “pessoas de bem” que consideram um absurdo ele pedir água, dinheiro ou comida nos dias em que chove, só há material de baixo valor ou um calor insuportável detona suas energias? Ou daqueles que não escondem a repugnância diante de alguém cujo cheiro mistura os aromas do lixo aos do próprio suor? E o que dizer dos que soltam um punhado de desaforos pelo fato de ele ocupar a calçada para arrumar o carrinho? E tem mais. Qual é a sua história? Por que se viu forçado a ocupar o lugar do burro ou do cavalo a fim de carregar o peso da própria sobrevivência? Onde ele mora? Debaixo do próprio carrinho com a esposa e os filhos, como acontece no Largo São Francisco, no centro de São Paulo? Em barracos onde a menor privacidade é um privilégio impensável? Como ele se aquece nas noites frias e de chuva? Ele tem estômago de urubu para comer o que tira do lixo? Como se vira a família dele quando alguém adoece? Seus filhos estudam? Têm um lugar apropriado para fazer as lições de casa ou um canto onde guardam materiais e livros a serem pesquisados? Lápis, caneta, giz de cera, folhas de sulfite e cadernos estão à sua disposição em nome de um futuro melhor? Ou, a exemplo dos pais, os filhos estão destinados a serem catadores que começam cedo o duro aprendizado da luta pela sobrevivência? A relação entre o casal é o que poderíamos chamar de estável ou própria de uma família estruturada?
A lista das perguntas é bem mais longa, mas a que formulamos é suficiente para entendermos o que significa a viração para este setor da sociedade e passar a outros questionamentos. Se estivesse dando aula para filhos e filhas de catadores, você lembraria de levar em consideração a realidade em que vivem na hora de preparar os recursos pedagógicos? Optaria por ensinar o que é uma oxítona, paroxítona e proparoxítona para ser fiel ao currículo ou quebraria as regras diante de uma realidade que torna ridículo o ensino mecânico de “pontos” da gramática portuguesa? A escolha do material, das atividades, das histórias e dos demais etceteras a serem usados em sala de aula refletiria a preocupação de dialogar com esta realidade? Procuraria simplesmente reafirmá-la? Compreendê-la? Buscaria estratégias para evidenciar os nexos causais que ajudam seus alunos a dar voz, cor e forma à “viração” que marca a vida dos pais e hipoteca seu futuro de filhos? Aliás, quais são mesmo os saberes de que são portadores os filhos dos catadores? Você iria se queixar com os pais de que são crianças agitadas? Que seu rendimento escolar é baixo? Ou que os pais não acompanham o desempenho dos filhos na escola? Você consegue ao menos imaginar o quanto isso é difícil, pra não dizer praticamente impossível?
Mais uma vez, poderíamos formular dezena de outras questões, mas bastam essas poucas para evidenciar o abismo que pode se estabelecer entre famílias e docentes. Sem uma sintonia entre os dois e sem uma compreensão dos interesses de classe que dão origem aos catadores como elo que leva a produção da riqueza a poupar gastos graças à reciclagem é materialmente impossível realizar um trabalho educativo consistente. Articular a vida das pessoas com o modelo econômico presente no país e com os caminhos que podem ser trilhados pela escola rumo à sua libertação das relações de poder existentes é um passo essencial para planejar as aulas e construir uma pedagogia que faça sentido. Sem isso, na melhor das hipóteses, corremos o risco de ter apenas o resgate de histórias pessoais que, de acordo com as tendências dominantes, superestimam a superação individual (que não incomoda ninguém) em prejuízo da percepção das injustiças sociais que as produzem, ou se limitam a gerar sentimentos de comiseração. Trabalhos assim se multiplicam e proliferam em muitos lugares. Servem de incentivo a não se queixar da própria sorte, segundo a máxima pela qual há sempre alguém em situação pior, mas raramente são capazes de introduzir elementos de reflexão que ajudam a fazer com que o conhecimento adquirido possibilite mudanças na vida das pessoas.
            Sem uma leitura adequada dos acontecimentos, das rotinas, das relações de poder, do que é fruto da incerteza expresso pela “viração” deste grupo humano, professores e professoras tendem a reproduzir o que há de mais caro às elites para justificar os problemas sociais produzidos pela ordem de exploração: responsabilizar os catadores, ou seja, as vítimas, por sua miserabilidade e por terem filhos que, na escola, se revelam “péssimos” e “terríveis”.[16]
            Ainda que o dia-a-dia dos catadores não possa ser generalizado, o seu resgate aponta para algo aparentemente claro, mas sempre esquecido: não é possível dar a mesma aula em qualquer escola para públicos que vêm de situações diferentes. Ensinar exige a elasticidade de adotar um processo didático-pedagógico adequado à situação dos alunos e não dar por pressuposto que estes sejam portadores da disciplina e do comportamento desejados pelo docente.
            As coisas tendem a se complicar na passagem entre os dois últimos anos do ensino fundamental e o médio. Se você assimilou o que dissemos no capítulo anterior, não terá dificuldade em imaginar como as mudanças sociais se refletem na visão dos alunos. Entre as expressões que descrevem o turbilhão de ações, emoções e sentimentos que pressionam e orientam o cotidiano de jovens e adolescentes encontramos a ideia da “vida loka”.
            Os estudos que analisam esse tema na perspectiva das camadas mais pobres da periferia paulistana apontam esta expressão como a verbalização de uma guerra diária, de um enfrentamento que vai além das dificuldades materiais para sobreviver e vencer a pobreza. A idéia central da vida loka é a de que viver nas periferias é mergulhar em múltiplos e variados conflitos que atingem sem trégua os seus moradores. São conflitos entre ricos e pobres, brancos e negros, homens e mulheres, entre os próprios pobres, diante da realidade que opõe os apelos da propaganda às possibilidades reais de consumo, em meio às relações e às frustrações da busca de visibilidade e identidade para sair do anonimato e saborear centelhas de afirmação social. Neles, as atitudes individuais podem variar a cada momento mesclando esperteza, esforço pessoal, acomodação oportunista a formas que permitem alcançar os objetivos almejados à custa dos demais, pequenos furtos e, às vezes, a adesão em graus diferenciados ao que é oferecido pelo tráfico. Nesta visão, a rotina corre em meio a batalhas cotidianas, grandes e pequenas, mas que sempre dizem respeito a confrontos reais. A idéia da guerra descreve uma luta permanente, de todos contra todos, vista ora como uma fatalidade, ora como uma realidade que precisa ser superada, mas sempre como elemento que faz a paz ser relegada ao campo do impossível, à esfera de uma utopia desejada e irrealizável.
            A vida loka expressa assim um cotidiano conturbado que faz o sujeito experimentar uma insegurança permanente, apela a uma preocupação constante de se proteger da violência, a esperá-la como algo próprio de uma guerra, a vivê-la com a naturalidade de quem precisa se defender e não vê saída. Trata-se de uma realidade diante da qual todos podem vir a ser vítimas ou algozes a depender do momento, das reações esboçadas, da posição assumida no combate diário, da rejeição dos limites impostos pela marginalização, da recusa do conformismo ou da disposição a se submeter a um destino visto como inevitável.
            Neste ambiente de imprevisibilidade (caracterizado por paixões, violências, ódios, amores intensos, rancores ou desforras), os caminhos que levam à vida ou a morte podem se cruzar a qualquer instante, sem aviso prévio, sem cálculos possíveis, sem que haja uma lógica capaz de explicar e dar sentido aos acontecimentos. Na vida loka, o encontro com a morte violenta pode ocorrer por motivos banais e circunstâncias do cotidiano que ganham caráter explosivo, pela mágoa de quem se sentiu traído, pelo viver diariamente em situação de risco, pelo se deparar inesperada e subitamente com a última gota que faz transbordar o vaso das humilhações e sofrimentos diários numa reação em cadeia que atinge indistintamente gente boa e ruim.
            Ao procurar uma reparação imediata dos sofrimentos vividos, o turbilhão de sensações e tensões, próprio desta guerra permanente, dá origem a uma trama complexa onde a razão de ser de cada reação (vista, experimentada ou produzida pelo sujeito) se não for arbitrária, excessiva ou incoerente, é sempre pouco clara. Enquanto parte das expressões do senso comum, viração e vida loka produzem comportamentos que se traduzem num “proceder” tão ambíguo, instável e contraditório quanto a realidade em relação à qual pretende orientar o agir dos indivíduos. Mescla de anseios, frustrações e limites impostos pelo ambiente circunstante, o “proceder” se apresenta como um ideal de conduta a ser respeitado, mas que, ao mesmo tempo, tem que acertar contas com as contradições da realidade e com a impossibilidade de ter domínio sobre a própria vida devido à caótica situação de riscos e incertezas.
            Longe de ser a expressão coerente de um conjunto de valores, ideias ou atitudes com a qual se guiar num cotidiano imprevisível, o “proceder” revela os traços confusos de quem busca a realização individual num mundo dominado por um estado de guerra permanente. De um lado, almeja se distanciar de um oportunismo covarde e mesquinho, próprio de quem quer sempre mais sem se importar com a forma de consegui-lo. De outro, faz cálculos para se dar bem ou se promover aproveitando das contrações do cotidiano e das ideias de afirmação social que impregnam o ambiente.
            Sobreviver na adversidade, mantendo a integridade possível, transforma o “proceder” num caminho tortuoso, cheio de idas e vindas, avanços e recuos, movimentos arrojados e silêncios prolongados. Suas linhas de conduta criam impasses perante os quais o sujeito não dispõe, nem pode encontrar uma solução coerente, mas, graças a elas, esboça as diferenças de percepção e vivência num ambiente em que, como numa verdadeira guerra, não se pode vacilar.
            É neste espaço, onde não há referências estáveis, em que as fronteiras entre o lícito e o ilícito são porosas e movimentadas, que adolescentes, jovens e adultos precisam construir seu dia-a-dia numa realidade que só promete medo, incerteza e imprevisibilidade. Ensinar nas escolas da periferia paulistana demanda, em primeiro lugar, construir um diálogo entre a ação educativa e o mundo da vida loka, da viração e do “proceder”. Temos aqui a necessidade primordial de professores e professoras entrarem em sintonia com este universo onde a progressiva deterioração das relações humanas ocupa o centro das explicações possíveis para o cotidiano macabro das instituições públicas de ensino fartamente relatado pela mídia.
            Trocado em miúdos, antes mesmo de iniciar o ano letivo, seria necessário se perguntar o que, na fugacidade caótica da vida loka, ainda faz sentido para alunos e alunas das periferias. Mergulhados nela, eles veem o futuro como espaço interditado e o presente como um redemoinho de sonhos, ilusões, humilhações, frustrações e impossibilidades. Que ensino e que pedagogia permitem construir esta sintonia? Que relação professor-aluno se faz necessária para que o primeiro consiga ganhar a confiança do segundo como passo essencial para ser ouvido e respeitado? Que demandas podem atrair ou contrapor esses dois mundos frequentemente tão distantes quanto a relação entre o papel de educador idealizado no início da carreira e os seguidos fracassos que a realidade impôs?
            Sim, sabemos que nem todos mergulharam na viração, nem vivem a vida loka das periferias paulistanas. Mas, ao realçar as cores destas realidades, queremos evidenciar a oposição frontal que se instaura entre as expectativas dos docentes e o universo onde são chamados a intervir. Explicar o fracasso escolar como resultado da ausência de um processo educativo no ambiente familiar é algo tão superficial e incapaz de ler a realidade a ponto de não perceber que a vida na sala de aula apenas reflete a desestruturação econômica, social e humana pelo qual passaram muitos pais e alunos.
            Em geral, o diálogo com os docentes revela a expectativa de ter alunos com certa pré-disposição a aprender, o que se aproxima do que é comumente encontrado em famílias estruturadas ou de faixas de renda superiores. Em seu interior, as crianças foram incorporando valores e comportamentos favoráveis aos estudos na fase pré-reflexiva, graças à imitação do que os pais faziam. Desde a infância, filhos e filhas dos setores médios da sociedade costumam ver os adultos lendo um livro, jornais ou revistas; têm parentes que falam outra língua ou irmãos mais velhos que ensinam a desvendar os segredos do computador através de jogos e brincadeiras. O processo de identificação afetiva leva a imitarem aqueles que amam sem que isso passe por uma percepção consciente das escolhas feitas, mas de forma tão natural e espontânea quanto respirar ou andar.
Na medida em que a convivência e a incorporação de atitudes simples (como brincar de ler ou permanecer sentado para ouvir uma história) ajudam a disciplinar o próprio corpo e a mostrar a importância da leitura, as crianças abrem caminhos tanto para o aprendizado como para dar valor aos elementos que o constituem. Ao ingressar na escola, quem passou por este caminhar tem mais chances de se deparar com uma situação para a qual seu corpo já incorporou atitudes que tornam o estudo menos pesado e cansativo.
Por sua vez, o bom desempenho escolar será mais facilmente recompensado no ambiente doméstico com gestos de amor e aprovação dos pais. Sabendo que estes são importantes por se tornarem objeto de reconhecimento e autoestima para si próprio, o aluno tende a pautar suas ações no sentido de receber constantemente as formas que demonstram a valorização do seu empenho nos estudos. A carga afetiva transmitida aos filhos com ações e palavras que expressam exemplos vivos, aliada a atitudes de vigilância e incentivo, faz com que, pouco a pouco, a criança transforme o desejo de sucesso na escola dos que ela ama em seu próprio desejo.
Por outro lado, um ambiente marcado pela desorganização familiar, por violência, abandono, descaso ou no qual as horas de convivência não apontam com gestos a importância dos estudos, tendemos a nos deparar com o processo oposto ao que acabamos de descrever. A longa série de conselhos verbais tem o mesmo peso das palavras pronunciadas por um pai fumante que, ao tossir com o cigarro na boca, recomenda ao filho de não fumar pelos males que isso vai causar.
Apesar das dificuldades que marcam o cotidiano, as famílias na base da pirâmide sabem que estudar é importante, querem que seus filhos estudem e fazem o que está a seu alcance para que eles se empenhem e tenham sucesso na escola. Neste sentido, não deixam de aconselhar, nem de puxar as orelhas para que eles transformem em bons resultados escolares os sacrifícios despendidos em trabalhos estafantes. O problema é que, no dia-a-dia da relação, e sem se aperceberem disso, partilham com eles momentos de vida que, na maioria das vezes, não ajudam no desempenho escolar e deixam cair no vazio os incentivos verbais. Onde não há exemplos concretos, palavras e conselhos apontam para um mundo estranho e os esforços solicitados acabam não fazendo sentido.
            O quadro se torna ainda mais sombrio sempre que, ao frequentar a escola, se deparam com punições que os caracterizam como maus alunos e reafirmam seu desinteresse ou incapacidade de aprender. Sem perceber que há um potencial aprisionado por uma dura realidade, as avaliações corriqueiramente aplicadas não servem para aprimorar a forma de intervenção docente necessária para dialogar com a realidade do aluno e tentar libertá-lo do que dificulta o acesso ao conhecimento. Menos ainda, podem ser usadas para alimentar o interesse pelos estudos, mas ajudam somente a separar alunos e alunas que se ajustam a exigências pré-determinadas dos que não se encaixam no molde e, portanto, são fadados ao fracasso. O resultado inevitável é uma sequência de situações humilhantes contra as quais crianças e adolescentes se revoltarão à sua maneira com formas e ações por demais conhecidas.
            Com isso, não afirmamos que há uma determinação mecânica para o sucesso ou o fracasso nos estudos em função da origem social ou das atitudes presentes no ambiente familiar. Exceções sempre acontecem, mas sua ocorrência não desmente as reflexões apresentadas. Nosso objetivo é de reafirmar a necessária busca de sintonia com a realidade em que vivem os alunos. É graças a ela que o docente, nos limites das condições dadas, começa a esboçar os caminhos de um aprendizado aberto a todos.


         6. Quando tudo parece não ajudar...

            Nossas reflexões seriam incompletas se não separássemos as dificuldades de escolarização, próprias do indivíduo, das que são produzidas nas redes de ensino. Infelizmente, o crescente processo de medicalização dos transtornos de aprendizagem tende a transformar questões coletivas em casos individuais nos quais a escola parece não ter participação. O discurso que aponta os distúrbios psíquicos do aluno como responsáveis pelo fracasso escolar dificulta a percepção dos problemas que têm origem na escola e é facilmente assimilado pelas famílias que procuram ajuda especializada a fim de resolver o que, em grande parte dos casos, está ao alcance das redes de ensino. Ainda assim, vamos por partes.
            Em sala de aula, um dos aspectos essenciais para abrir a porta do conhecimento aos alunos é, sem dúvida, a qualidade da relação que o docente consegue construir com eles. O ser humano, de fato, aprende daqueles aos quais dá o direito de lhe ensinar. Na medida em que a relação se torna significativa para o aluno, vai abrir caminhos à aprendizagem. Neste sentido, as diferenças de ambiente, classe social, lugar de origem, religião, situação familiar, etc., devem ser apenas um convite para o docente conhecer o meio em que vivem e se movimentam seus alunos e não motivo para julgá-los ou menosprezar suas possibilidades.
            Entre os aspectos que chamam à atenção, encontramos as condições físicas do ambiente destinado ao aprendizado. Não são poucos os prédios que se parecem com cadeias, com espaços comuns sem iluminação natural, salas apertadas, que contradizem as condições climáticas da região e sem um mínimo de conforto para professores e alunos. Construídas com base em projetos que otimizam a utilização dos espaços, sem levar em consideração o fato de serem ambientes escolares, as estruturas físicas com as quais nos deparamos muitas vezes dificultam a atividade docente ou impedem que se crie um ambiente de concentração e dedicação aos estudos.
            A produção de educadores e alunos fracassados ganha outro forte aliado no autoritarismo que marca a implementação das políticas públicas na educação. Basta pensar, por exemplo, na introdução da progressão continuada ou na determinação de a escola receber alunos portadores de necessidades especiais. Para além da importância e do valor pedagógico destas medidas, o fato é que elas são “jogadas” como uma bomba no ambiente escolar sem que haja o devido preparo do docente, das instalações, do material a ser utilizado, sem a redução do número de alunos por sala, enfim, desconsiderando a realidade. Frequentemente, sua aceitação se dá apelando ao mito pelo qual o “bom professor” é aquele que sempre dá conta do recado ou a valores éticos inquestionáveis. Então, por omissão, por não querer ser chamado de “ruim” ou parecer discriminador e preconceituoso, o docente consagra com o silêncio a adesão a algo que não tem como dar certo.
            Processo parecido ocorre com os cursos de formação continuada, reciclagem profissional ou outros eventos para melhorar a competência técnica dos educadores vistos como estratégia para elevar a qualidade do ensino. Partindo de uma suposta incompetência, aplicam-se cursos e ensinam-se métodos que não dialogam com os saberes nem com as condições reais em que se realiza o trabalho docente, o que, por si só, costuma ser suficiente para inviabilizar a aplicação dos conteúdos aprendidos. Longe de ajudar a organizar o cotidiano em sala de aula, a frustração oriunda do fracasso acaba colocando o professor no banco dos réus e reafirmando seu despreparo como razão da má qualidade do ensino, apesar dos esforços do Estado.
            Por sua vez, os baixos salários põem em movimento uma dinâmica perversa. A necessidade de garantir condições dignas de sobrevivência e proporcionar o aperfeiçoamento profissional fora do que é oferecido pelas políticas públicas leva inúmeros docentes a aumentar a carga horária semanal. A conseqüência óbvia desta escolha é uma crônica falta de tempo para preparar aulas à altura das necessidades dos alunos, para se informar, para aprofundar temas e conteúdos, para participar de momentos que permitam estreitar relações com a comunidade local. Isso sem contar os passos que o excesso de trabalho leva a dar em direção ao adoecimento psíquico ou à migração para outras ocupações como forma de integrar o orçamento familiar. Somados à precariedade das condições de trabalho, os baixos salários produzem sentimentos de desvalia uma vez que o ordenado é a representação monetária do valor do próprio trabalho pelo empregador e uma prova do baixo reconhecimento dos esforços despendidos.  Se, de um lado, um bom ganho salarial não garante, por si só, a qualidade do processo educativo, de outro, qualquer proposta séria de melhoria do ensino passa necessariamente pela elevação salarial daqueles que a fazem acontecer.
            A rotatividade dos profissionais nas escolas é, sem dúvida, outro elemento que contribui para dificultar o processo de ensino-aprendizagem nos moldes que descrevemos. Sua ocorrência quando de afastamentos, licenças, remoções ou cargos assumidos em função de concursos rompe os vínculos essenciais entre educadores, escola, alunos, comunidade local, diretor e coordenadores pedagógicos. A entrada e saída de pessoas no grupo que integra o efetivo docente tende a produzir desapego à instituição e a romper a identidade coletiva cuja formação e reestruturação demandam tempo, convivência, construção de projetos e soluções de conjunto. Quanto mais frágil a identidade que professores e professoras conseguem desenvolver, maiores serão as dificuldades de criar espaços sistemáticos de reflexão. É fato que até mesmo onde estes são estabelecidos por horários específicos no interior da jornada de trabalho, acabam sendo usados para corrigir provas, desabafar a irritação com os alunos, trocar receitas, falar da vida fora da escola. Ninguém nega que isso ajude a descontrair e a aliviar as tensões, mas não integra profissionais num projeto coletivo.
            Graças à rotatividade e a seus efeitos sobre o grupo, no lugar de uma equipe docente, é comum encontrarmos um ajuntamento de professores e professoras que pensam e atuam de maneira individualizada, solitária, competitiva e, não poucas vezes, hostil. Este quadro produz resultados ainda mais nefastos quando da falta ou troca de docentes sem uma substituição à altura, com dispensa de alunos, juntando classes sem atividades apropriadas e na falta de apoio de supervisores, diretores e coordenadores pedagógicos. Quanto mais a escola estiver longe do centro, mais estas situações se repetem e dificultam a relação com alunos e bairros cujas carências e especificidades demandariam uma presença mais prolongada como condição para construir um projeto educativo à altura dos desafios da realidade.
            Além dos elementos apontados acima, ao analisar a atividade docente, nos deparamos muitas vezes com preconceitos e situações humilhantes que em nada ajudam a moldar a relação de confiança da qual falávamos no início do capítulo. Que os alunos das camadas sociais empobrecidas costumam ter baixo acesso à cultura, falam errado, são oriundos de situações familiares complexas ou carregam carências afetivas próprias da degradação do ambiente em que vivem, não é novidade para ninguém. O problema vem quando esses elementos que deveriam ser levados em consideração para a escolha de um projeto pedagógico tornam-se motivo para justificar a aplicação de aulas repetitivas e desinteressante, para um olhar docente que não acredita em sua capacidade de aprender ou até mesmo para situações de humilhação que, na maioria dos casos, são expressões de frustração e estresse de quem ensina. A raiva que marca os desabafos em sala de aula degrada a relação que precisa ser construída para viabilizar o aprendizado e só produz mais irritação e respostas agressivas.
A somatória destes fatores eleva o sofrimento de quem já está sofrendo. Docentes, alunos e famílias passam a se digladiar em discussões inúteis e desgastantes. A procura de um culpado substitui reflexões sérias sobre a prática em sala de aula, fecha as portas ao diálogo possível, impede de ver a realidade e o peso da própria responsabilidade. O resultado final não pode ser outro: apatia, resignação, indiferença, conformidade, passividade, desvalorização, sobrecarga, estresse, enfim, um clima impróprio para o exercício do magistério.
Longe de aproximar e gerar expressões de solidariedade, o sofrimento assim vivenciado afasta, opõe, estimula divisões entre os que deveriam se unir. O que os docentes raramente percebem é que as situações humilhantes e preconceituosas na relação com os alunos das camadas mais pobres alimentam neles um conceito de si mesmos que influencia negativamente seu comportamento e seu desempenho num processo cumulativo que leva à perda de traços de humanidade e à ampliação da dor que atravessa gerações. A dor que machuca o humilhado das camadas mais pobres vai além de algo momentâneo ou suportável até que novos acontecimentos tragam alívio e esquecimento. É uma dor que atinge feridas abertas, que se soma a um fardo anterior cujo razão de ser pode ter se perdido no tempo, que é coletivamente padecida, mas age no sujeito como algo que corrói por dentro, eleva sua angústia e fere como espinho na carne.
Ao penetrar mais profundamente em função de alguma palavra, gesto ou situação de rebaixamento, este espinho produz novas razões de sofrimento que perturbam o já precário equilíbrio emocional, deixa lembranças que desarrumam as possibilidades de uma reação positiva, dá asas a expressões raivosas e violentas que vêm à tona como um pedido de socorro ou até mesmo sem que o indivíduo tenha uma explicação consciente das razões pelas quais age daquela forma. Na medida em que o docente não se vê no lugar do aluno e é incapaz de visualizar o impacto real de sua postura sobre ele, o resultado final só pode ser desastroso tanto em termos de diálogo, como de produção do conceito de si mesmo por parte do próprio aluno.
O que os docentes costumam esquecer é que as pessoas não deixam sem resposta as situações de humilhação, maus-tratos ou preconceito de que são vítimas. Suas reações podem variar a depender do grau de compreensão da realidade ou do sofrimento acumulado; se expressar no gemido surdo de quem engole mais um sapo, no esforço silencioso para neutralizar o que está se tornando insuportável, na raiva despertada pela humilhação, no bloqueio causado pelo medo de novas situações humilhantes; ou explodir na rejeição inconsciente de uma situação que soa como uma condenação ao fracasso.
Por outro lado, podemos nos deparar também com formas de resignação servil que tratam de adequar o sujeito a um sentido forçado e postiço no qual diz acreditar para se ver livre de um problema ou para dissimular os efeitos nefastos das humilhações sofridas. Cedo ou tarde, o silêncio que acompanha o conformismo assim obtido deságua em formas de submissão raivosa que emergem ora em maquinações maliciosas e veladas, ora em expressões ao mesmo tempo violentas e impotentes à medida que a irritação do indivíduo se mescla à consciência de que ele não porá em prática as ideias de vingança. Não poucas vezes, a humilhação e o preconceito, ainda que veiculados de forma inconsciente, alimentam situações de ressentimento que levam os atingidos a retirarem a confiança e a esperança depositada nos demais.
O julgamento dos golpes recebidos também pode levar a uma resignação na qual o sujeito vai construindo uma interpretação que não se encaixa nas opiniões publicamente aceitas, ganha as cores de um protesto invisível e discreto, mas que prepara uma reação capaz de expressar sua revolta. Isso ocorre na medida em que o significado atribuído às situações de rebaixamento vivenciadas rompe a inércia produzida pelos entendimentos típicos dos que optam por se conformar e, com o tempo, se torna ação. Esta pode ser impulsiva, raivosa e solitária, como ocorre na maior parte das vezes, ou funcionar como uma pedra lançada na água parada. Por pequena que seja, produz ondas que despertam indignação, incomodam e demandam respostas ao dialogarem com os sentimentos dos humilhados que, apesar das diferentes reações diante dos acontecimentos, têm em comum o fato de abominar o rebaixamento social.
Por teóricas e incompletas que sejam estas breves constatações, é fato que, quando nos dispomos a ouvir de perto as vítimas da humilhação, as impressões gerais do senso comum das quais somos portadores cedem o lugar a uma realidade bem mais dura e sofrida da que podíamos imaginar. Os gemidos desse sofrimento não podem ser ouvidos num contato rápido e descomprometido, mas tão somente quando a disposição ao diálogo com a realidade de marginalização se prolonga no tempo, ganha as feições de um compromisso cuja primeira expressão é facilitar que os humilhados de sempre possam dizer o que realmente sentem e não apenas o que suportamos ouvir.
Por isso, ensinar implica em realizar diariamente ações, gestos e escolhas que colocam de lado as prescrições oficiais e desafiam a criatividade. Garantir abertura e capacidade de construir um saber prático diante da imprevisibilidade que marca presença em sala de aula é condição necessária para viabilizar o engajamento do corpo e da inteligência, desenvolver jogo de cintura, manter ativa a habilidade que nos permite sentir, pensar e, obviamente, desafiar a realidade. E não é pra menos. Como em qualquer profissão, os docentes são chamados a acertar contas com a diferença entre o trabalho imaginado, prescrito e real.
O primeiro reúne as expectativas, projeções, anseios, sonhos, angústias e desejos de reconhecimento na busca da realização pessoal e profissional como condição para um equilíbrio emocional e mental duradouro. O segundo define o campo das prescrições legais, das normas internas, das regras que delimitam áreas e servem como critério de avaliação dos resultados. O trabalho real é constituído pela experiência em sala de aula, ao vivo e a cores, dia após dia. Este último patamar convoca o docente a preencher as lacunas com os níveis anteriores, derrota prescrições e projeções, coloca em cheque o saber prático acumulado, alimenta a distância entre a realidade material e a capacidade de previsão, desafia a inteligência e a criatividade e não poupa surpresas desagradáveis, sentimentos de impotência, decepção, irritação e esmorecimento.
O trabalho docente impõe a necessidade de lidar com o desconhecido, de ampliar os próprios horizontes, de tentar o novo, de questionar o que se apresenta como natural e consolidado, de acreditar que o gosto amargo do fracasso é um dos elementos para continuar buscando respostas a uma realidade que não se deixa dominar por completo. Este fracasso é o meio pelo qual percebemos a distância que existe entre o trabalho imaginado, prescrito e real. É algo que sempre provoca sofrimento, se revela no mau desempenho do aluno, na frustração diante dos magros resultados após horas de dedicação, na percepção de que os elementos destinados a proporcionar segurança e autoconfiança evaporam diante de uma realidade que se burla do saber de quem ensina. Enfim, um fracasso que faz os docentes caírem de boca diante do inesperado e projeta num caminho a ser aberto o passo necessário para a própria realização pessoal em nome da qual o cumprimento das normas promete apenas uma longa lista de decepções e impossibilidades.
As coisas se complicam quando a esta realidade acrescentamos outro ingrediente: o papel do conhecimento num mundo moldado por relações de desigualdade, poder e dominação. Ensinar a quem está na base da pirâmide social, implica em engajar a capacidade docente para vencer as condições e os desafios de um mundo hierarquizado, ordenado em volta das necessidades da exploração, prenhe de uma coerção que ora vem à luz de forma franca e aberta, ora se disfarça em situações corriqueiras. Assim, “dar aula” implica em tomar posição, em experimentar as resistências e os receios próprios do ambiente em que a escola se insere, em superar preconceitos e em pilotar formas de acesso ao conhecimento com alunos que vivem em realidades que desafiam o professor mais preparado. Não é algo que um indivíduo pode fazer, mas é obra de um coletivo que coopera, torna-se capaz de uma cumplicidade positiva e inteligente, para o qual dar aula não se limita a trabalhar numa escola, mas é sinônimo de disponibilidade a construir constantemente o viver juntos naquele ambiente.
A cooperação, porém, não é algo dado, evidente, ao alcance da mão nem, muito menos, uma necessidade que se impõe por si mesma. Cooperar supõe transformar vontades individuais em objetivos comuns e é tão desafiador quanto transformar em coral um grupo de solistas convencidos dos próprios talentos. Para que isso seja possível, são necessários desprendimento e vontade de dar o melhor de si, ao mesmo tempo em que cooperar significa, pelo menos em parte, conter a própria subjetividade, saber escolher o momento de avançar e de recuar, de apressar ou segurar o ritmo para que o coletivo possa se apropriar do momento, de renunciar a algo imediato para que o próximo passo seja possível.
Quanto mais afastados estivermos desta realidade, mais abriremos a porta a um individualismo vazio e desgastante, a uma relação interpessoal que descamba em conflitos, rasteiras, falta de ética, cinismo, ao que contribui para destruir a criatividade, a subjetividade e as próprias bases da saúde mental. Aos poucos, a ausência de cooperação se transforma em veículo para a solidão, para a incapacidade de dar sentido ao cotidiano, para alimentar o isolamento, a apatia, a sensação de impotência e desamparo que abrem caminhos ao adoecimento psíquico.
Se, de um lado, vivemos numa sociedade que busca a visibilidade e a ascensão social a qualquer preço, de outro, é preciso resgatar que nada disso funciona por si só. Para funcionar a contento, um sistema de opressão não se limita a usar o medo para conseguir a obediência dos homens e das mulheres sobre os quais se impõe, mas busca a adesão ativa destes à lógica da submissão. Uma adesão que implica em dedicar inteligência, compromisso e zelo a uma ordem que irá reproduzir e ampliar as desigualdades, num processo de servidão voluntária que destrói o indivíduo na mesma proporção em que garante levá-lo ao topo da realização possível em seu meio.
Diante da sedução que convida a rejeitar a cooperação em nome do sucesso individual, o trabalho docente capaz de dialogar com a realidade local, de se reinventar constantemente, de transgredir os limites da dominação, de gerar confiança, solidariedade e reconhecimento depende da construção de um espírito de coletividade capaz de enfrentar os desafios que o presente impõe.


7. Educação e qualificação para o trabalho: pistas para a reflexão.

A esta altura, acreditamos ter conseguido provar que o centro a partir do qual se definem as mudanças, ou a manutenção, dos aspectos que moldam a educação está situado no mundo do trabalho e, especificamente, nas relações de produção e de poder. Suas características e expressões podem variar a depender das peculiaridades da região, da conjuntura do país, dos altos e baixos da economia mundial e da luta da classe trabalhadora, mas a bússola que marca o destino final tem o indicador apontado para o lucro. Para que este objetivo central do sistema se realize no presente e se perpetue, o capital busca se apropriar de toda a força de trabalho que esteja em condições de gerá-lo, ao mesmo tempo em que a dinâmica da acumulação marginaliza setores da população a ponto de impedir que tenham condições suficientes para serem explorados.
 A escola que o capital deseja é a que proporciona o grau máximo de aproveitamento da força de trabalho e que se adapta às necessidades do mercado para oferecer qualificações, competências e aspectos disciplinares que proporcionam a ampliação do exército industrial de reserva rumo à manutenção de um baixo nível salarial. Privada ou pública, uma instituição de ensino cumpriria o seu papel sempre que fosse capaz de criar nos alunos a predisposição a atender às demandas da produção e a reproduzir em seu cotidiano os elementos dos quais o sistema precisa para se perpetuar. A ligação escola-trabalho, portanto, traz em si o pressuposto pelo qual o ensino vale à medida que assegura um grau de confiabilidade suficiente da classe trabalhadora, num processo que reduz progressivamente sua bagagem cultural e capacidade de resistência.
Trocado em miúdos, as relações de poder que estendem seus tentáculos a partir da produção da riqueza decretam o fracasso das próprias diretrizes básicas da educação e declaram guerra aos que teimam em formar pessoas que sejam capazes de pensar, criticar, acompanhar os passos de quem dirige a vida em sociedade ou buscam o conhecimento para construir um mundo onde haja tudo para todos.
A base a partir da qual reafirmamos nossas posições iniciais não se encontra em elementos abstratos da teoria, mas na realidade de um mundo que sairá da crise econômica atual à custa de uma ulterior precarização do emprego e de um vigoroso arrocho salarial como caminhos para impulsionar uma nova fase de crescimento. No Brasil, os empresários já atuam em defesa da terceirização nas atividades fim de seus empreendimentos, rumo a um forte e imediato barateamento dos custos do trabalho. Enquanto no Brasil apenas 10% das empresas lançam mão deste meio, na União Europeia a porcentagem atinge os 50% e nos Estados Unidos beira os 75%. Sendo assim, o cenário mais provável é que, no futuro próximo, uma porcentagem bem maior da classe trabalhadora local verá encolher seus ordenados e ficará à mercê de um processo que precariza as formas de seguridade social, amplia a rotatividade e apaga os registros que permitem delinear a relação doença-trabalho-exploração.
Se isso não bastasse, se multiplicam os intelectuais a serviço da elite que defendem reajustes salariais com base na elevação da produtividade e não no aumento do custo de vida. O constante arrocho salarial a ser proporcionado por esta medida ampliaria a sobrevida que o fortalecimento da terceirização dará às máquinas obsoletas da base produtiva do país, engordaria ainda mais os lucros e criaria uma realidade frente à qual os conteúdos dos ensinos fundamental e médio pareçam elevados demais para as necessidades reais do mercado de trabalho.
Prova disso já pode ser saboreada na reação dos empresários ao ponto mais polêmico do Plano Nacional de Educação (PNE) que prevê a ampliação dos recursos de um mínimo de 7% a um máximo de 10% do PIB. Definido como um “suicídio” pelos mesmos patrões que acusam a escola de não qualificar pessoas para a produção, a futura elevação das verbas destinadas a este fim é publicamente condenada como uma ameaça ao país. Ciente de que isso poderia gerar indignação popular, em 28 de maio do ano em curso, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado aprovou o PNE com uma manobra que começa a esvaziá-lo. No lugar de a porcentagem do PIB se referir ao Investimento Federal em Educação Pública, o texto foi alterado para que o dinheiro se refira ao Investimento Público em Educação. A troca de palavras permite que sejam incluídas na conta, por exemplo, a renúncia fiscal com o Programa Universidade para Todos (PROUNI), que concede bolsas em instituições particulares de ensino superior, e os gastos do “Ciência Sem Fronteiras” que envia brasileiros para estudar em universidades fora do país, além de dispêndios que têm a ver com a educação, mas passam longe do espírito inicial do PNE. E este promete ser apenas o começo do processo que levará a desfigurar o Plano no debate parlamentar.
O panorama que esboçamos nos permite traçar às conclusões que seguem:
  1. Não existe uma educação neutra. Há, sim, sempre e somente, um sistema educacional atrelado à manutenção e aperfeiçoamento das relações sociais de produção que não hesita em utilizar os mais variados meios para esvaziar possíveis oposições. Das condições de trabalho aos baixos salários, força-se a instalação de uma realidade que impede objetivamente a implantação de alternativas de ensino capazes de se tornar um incômodo ponto de referência. Nas recentes mudanças na organização das escolas estaduais de São Paulo, chega-se a permitir que os docentes trabalhem até 65 horas semanais como forma de completar o quadro de funcionários e arredondar os salários. De que maneira profissionais com esta carga horária encontrarão condições para atualizar seus conhecimentos e preparar as aulas é um mistério que a secretaria da educação não pretende desvendar. Mas, com certeza, o nível de estresse, adoecimento psíquico, fracasso escolar e do que impede um processo educativo que interessa à classe trabalhadora se manterá firme e forte apesar dos discursos oficiais.
  2. As reflexões que apresentamos desmistificam e relativizam a ideia pela qual a educação é um remédio para todos os males, o ponto de partida para a solução dos problemas sociais e o fator responsável pelo sucesso, ou o fracasso, do cidadão. Sem negar o papel do ensino na formação do indivíduo, mostramos que, no capitalismo, as formas de produção e distribuição da riqueza têm um papel determinante na fabricação do trabalhador desejado, nas contradições que marcam o cotidiano da vida em sociedade, na história de sofrimento das maiorias e nas suas possibilidades de futuro. Nesse contexto, a escola que se destina à classe trabalhadora não desempenha o papel de protagonista, mas tão somente de ator coadjuvante, sempre a reboque das ações, posturas, valores, ideias e critérios de análise desejados pelas relações de poder em nome da manutenção e aprimoramento da ordem.
  3. Por outro lado, a sala de aula é também o espaço do possível confronto das idéias. Nela, a transmissão hegemônica do que é caro às elites depende da presença de educadores formados na escola do capital, fiéis portadores de expressões aprimoradas de senso comum e paladinos das concepções de vida dominantes. Docentes assim preparados se contentam com as aparências na medida em que estas sempre dão razão às aparências; confundem opinião pública com opinião que se publica; não costumam dispor de sólidos critérios de análises ou pressupostos críticos; e usam o pensar da maioria como critério de verdade. Esse resultado só pode ser alcançado controlando cada etapa da formação do educador como processo essencial à redução do espaço de autonomia do qual dispõe. E, sempre que esse controle não atenda os padrões desejados, a instalação de câmaras de vídeo em sala de aula deve fazer com que o olho eletrônico sirva como mais um elemento de intimidação.
  4. A autonomia e a visão classista do docente (como elementos que possibilitam se apropriar de conhecimentos capazes de alterar os rumos da vida coletiva) evidenciam o papel contraditório da educação escolar. Seus conteúdos e posturas podem levar a tomar consciência da realidade, a encontrar formas de expressar indignação, a não se conformar e a substituir a resignação pela resistência. O primeiro passo consiste em entrar em sintonia com o mundo no qual a escola se insere, em proporcionar o encontro com o prazer de aprender perdido na história de vida de crianças e adolescentes e em aprimorar tanto as expressões de sua inteligência e criatividade, como o olhar crítico sobre a realidade. Ditos profissionais terão que saber a ler o processo que aprisionou o gosto dos alunos pelo aprender e os levou a reforçarem atitudes e convicções que criam obstáculos ao aprendizado, levam a encasular a criatividade, a renunciar a pensar e a conhecer. Ao resgatar o prazer de aprender, o próprio docente terá de volta o prazer de trabalhar aprendendo e de aprender trabalhando.
Esta não é uma escolha fácil. O que podemos garantir desde já é que virá carregada de tensões. As relações de poder demandam uma atuação no sentido de controlar as pessoas, de submetê-las e integrá-las à ordem estabelecida, sem mais nem menos. Abrir a cela que prende a inteligência dos alunos é um gesto subversivo que, a exemplo do que ocorreu com Sócrates 24 séculos atrás, pode atingir o docente com pesadas acusações. Ainda que o avanço tecnológico proporcione formas de cicuta não letais, a vida se encarregará de colocar uma pergunta incômoda: de que lado você vai ficar? Responder não será fácil. E exigirá de quem opta pela classe trabalhadora a paciente construção das condições que permitem nadar contra a correnteza para liderar a mudança possível em cada ambiente.
  1. Último, mas não menos importante, é a necessidade dos próprios trabalhadores perceberem que a precariedade do ensino a eles destinado não é algo que diz respeito apenas à capacitação de alunos e docentes, mas guarda um vínculo estreito com o modelo de país que está sendo construído. Esperar que a iniciativa privada e o Estado resolvam o problema é como entregar ao bode a tarefa de tomar conta da horta. Mudanças irão acontecer, mas sempre de acordo com os interesses do bode. No momento em que escrevemos é parte do senso comum a percepção de que a melhoria da educação é “coisa de professor” e de seus órgãos de representação. Nada mais errado. Ou a classe trabalhadora entra firme na construção de um projeto educativo que possibilite sair da submissão e do conformismo ou seguirá ampliando as grossas paredes da cela que aprisionam suas alternativas de futuro. Além da ação dos movimentos populares, faz-se necessário e urgente que os próprios sindicatos de trabalhadores das mais diversas categorias apostem na construção de um projeto de educação a partir de baixo. O debate que se desenvolverá em torno disso ajudará a concretizar a discussão sobre o país que precisamos construir como protagonistas e não mais como figurantes de um roteiro escrito pelos patrões.
À luz dessas breves reflexões, é evidente que o fracasso escolar não pode ser entendido como um acidente de percurso que vitima este ou aquele indivíduo, mas como o fruto esperado da produção da vida em sociedade nos moldes que descrevemos. A análise desenvolvida faz emergir um cotidiano duro, desafiador, intrigante, porém real. Não se trata de algo a ser lamentado, mas a ser reconstruído a partir da ação e da reflexão da classe trabalhadora.
Por isso, não procuramos culpados. Não só porque conhecemos todos e cada um deles. Mas, sobretudo, porque o debate a ser desenvolvido busca encontrar quem de fato ajude a construir as mudanças que se fazem necessárias.


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[1] Os dados acima foram divulgados em estudo da ONU e da Federação Internacional de Robótica e publicados pelo jornal Gazeta Mercantil em 29/10/1997. Neste mesmo ano, havia diferenças gritantes na comparação entre o Brasil e os países que primavam por seus avanços na educação. Não por acaso, pelo mesmo estudo, Taiwan tinha 4.500 robôs, a Coréia do Sul 27.000, a Alemanha 60.000, os Estados Unidos 70.858 e o Japão 399.629.
[2] Dados extraídos de BRITO, Fausto. Transição demográfica e desigualdades sociais no Brasil, em Revista Brasileira de Estudos da População, Vol. 25, Número 1, São Paulo, janeiro-junho de 2008.
[3] Os dados foram publicados no relatório da ONU sobre a média de anos de escolaridade para pessoas acima de 25 anos de idade entre 2000 e 2011 e divulgados pelo jornal Valor Econômico na edição de 14/02/2013. Em termos comparativos, vale a pena assinalar que, no mesmo período, na China houve uma evolução de 6,6 para 7,2 anos; na Índia, de 3,6 para 4,4; na Rússia de 9,6 para 9,8; no México de 7,4 para 8,5; na Argentina, de 8,6 para 9,3.
[4] Dados elaborados pelo autor a partir das tabelas do Censo 2010, divulgadas no site do próprio IBGE.
[5] Os dados relativos à rotatividade e à diferença entre os salários dos admitidos e dos demitidos foram elaborados a partir das tabelas publicadas em dois livros do DIEESE, Rotatividade e flexibilidade no mercado de trabalho, São Paulo, 2011, e A situação do trabalho no Brasil na primeira década dos anos 2000, São Paulo, 2012. A porcentagem relativa à remuneração dos terceirizados consta do estudo da Central Única dos Trabalhadores cujas conclusões, com base nos dados do CAGED foram divulgadas pele entidade em 16/10/2012.
[6] Dados publicados em ARBACHE, Jorge, Retorno do investimento em educação está caindo, em Valor Econômico, 12/03/2013.
[7] Dados extraídos das tabelas do Censo 2010, divulgadas no site do próprio IBGE.
[8] A tabela que segue foi publicada pelo jornal Valor Econômico na edição de 14 de fevereiro de 2013.
[9] Os dados constam do relatório do CAGED-MTE, Nível de emprego formal celetista-resultado de 2012, acessível através do site do Ministério do Trabalho e Emprego.
[10] Idem.
[11] Os dados acima foram publicados na página eletrônica da BBC em português no dia 22/04/2013 e pelo jornal mexicano La Jornada em sua edição de 04/08/2013.
[12] Estamos nos referindo à página eletrônica http://www.jobisjob.com.br/rj/pintor+industrial/vagas.
[13] Dados extraídos de DIEESE, Estudo do setor hoteleiro, São Paulo, 2013. Disponível no site da entidade.
[14] Maiores informações sobre a organização desses cursos podem ser encontradas em ABUD, Camila. Escolas criam cursos de língua sob medida para atender a Copa, em: Diário do Comércio e da Indústria, 19/02/2013.
[15] Um deles é Jesse Souza que, no livro A ralé brasileira – quem é e como vive. Ed UFMG, Belo Horizonte, 2009, aponta em um terço da população economicamente ativa o contingente de pessoas nestas condições.
[16] Para uma amostra razoavelmente completa do panorama aqui anunciado, recomendamos a leitura do relatório do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, Crianças e adolescentes no universo do lixo, UNICEF/UBEE/IMS, 2005, que relata a experiência de docentes chamados a ensinarem para crianças e adolescentes, filhos de catadores, e de onde foram extraídos os adjetivos que definem sua participação na escola do projeto a eles destinado. Neste trabalho, que revela um verdadeiro diálogo de surdos entre docentes e alunos, é possível constatar com riqueza de detalhes a situação que acabamos de introduzir.

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